Google This is a digital copy of a book that was prcscrvod for gcncrations on library shclvcs bcforc it was carcfully scannod by Google as part of a projcct to make the world's books discoverablc online. It has survived long enough for the copyright to expire and the book to enter the public domain. A public domain book is one that was never subject to copyright or whose legal copyright term has expired. Whether a book is in the public domain may vary country to country. Public domain books are our gateways to the past, representing a wealth of history, cultuie and knowledge that's often difficult to discover. Marks, notations and other maiginalia present in the original volume will appear in this file - a reminder of this book's long journcy from the publisher to a library and finally to you. Usage guidelines Google is proud to partner with libraries to digitize public domain materiais and make them widely accessible. Public domain books belong to the public and we are merely their custodians. Nevertheless, this work is expensive, so in order to keep providing this resource, we have taken steps to prcvcnt abuse by commercial parties, including placing lechnical restrictions on automated querying. We also ask that you: + Make non-commercial use of the files We designed Google Book Search for use by individuais, and we request that you use these files for personal, non-commercial purposes. + Refrainfivm automated querying Do nol send automated queries of any sort to Google's system: If you are conducting research on machinc translation, optical character recognition or other áreas where access to a laige amount of text is helpful, please contact us. We encouragc the use of public domain materiais for these purposes and may be able to help. + Maintain attributionTht GoogXt "watermark" you see on each file is essential for informingpcoplcabout this projcct and hclping them find additional materiais through Google Book Search. Please do not remove it. + Keep it legal Whatever your use, remember that you are lesponsible for ensuring that what you are doing is legal. Do not assume that just because we believe a book is in the public domain for users in the United States, that the work is also in the public domain for users in other countiies. Whether a book is still in copyright varies from country to country, and we can'l offer guidance on whether any specific use of any specific book is allowed. Please do not assume that a book's appearance in Google Book Search mcans it can bc used in any manner anywhere in the world. Copyright infringement liabili^ can be quite severe. About Google Book Search Googlc's mission is to organize the world's information and to make it univcrsally accessible and uscful. Google Book Search hclps rcadcrs discover the world's books while hclping authors and publishers rcach ncw audicnccs. You can search through the full icxi of this book on the web at |http: //books. google .com/l Google Esta é uma cópia digital de um livro que foi preservado por gerações em prateleiras de bibliotecas até ser cuidadosamente digitalizado pelo Google, como parte de um projeto que visa disponibilizar livros do mundo todo na Internet. O livro sobreviveu tempo suficiente para que os direitos autorais expirassem e ele se tornasse então parte do domínio público. Um livro de domínio público é aquele que nunca esteve sujeito a direitos autorais ou cujos direitos autorais expiraram. A condição de domínio público de um livro pode variar de país para país. Os livros de domínio público são as nossas portas de acesso ao passado e representam uma grande riqueza histórica, cultural e de conhecimentos, normalmente difíceis de serem descobertos. As marcas, observações e outras notas nas margens do volume original aparecerão neste arquivo um reflexo da longa jornada pela qual o livro passou: do editor à biblioteca, e finalmente até você. Diretrizes de uso O Google se orgulha de realizar parcerias com bibliotecas para digitalizar materiais de domínio púbUco e torná-los amplamente acessíveis. Os livros de domínio público pertencem ao público, e nós meramente os preservamos. No entanto, esse trabalho é dispendioso; sendo assim, para continuar a oferecer este recurso, formulamos algumas etapas visando evitar o abuso por partes comerciais, incluindo o estabelecimento de restrições técnicas nas consultas automatizadas. Pedimos que você: • Faça somente uso não comercial dos arquivos. A Pesquisa de Livros do Google foi projetada p;ira o uso individuíil, e nós solicitamos que você use estes arquivos para fins pessoais e não comerciais. • Evite consultas automatizadas. Não envie consultas automatizadas de qualquer espécie ao sistema do Google. Se você estiver realizando pesquisas sobre tradução automática, reconhecimento ótico de caracteres ou outras áreas para as quEus o acesso a uma grande quantidade de texto for útil, entre em contato conosco. Incentivamos o uso de materiais de domínio público para esses fins e talvez possamos ajudar. • Mantenha a atribuição. A "marca dágua" que você vê em cada um dos arquivos 6 essencial para informar aa pessoas sobre este projoto c ajudá-las a encontrar outros materiais através da Pesquisa de Livros do Google. Não a remova. • Mantenha os padrões legais. Independentemente do que você usar, tenha em mente que é responsável por garantir que o que está fazendo esteja dentro da lei. Não presuma que, só porque acreditamos que um livro é de domínio público para os usuários dos Estados Unidos, a obra será de domínio público para usuários de outros países. A condição dos direitos autorais de um livro varia de país para pais, e nós não podemos oferecer orientação sobre a permissão ou não de determinado uso de um livro em específico. Lembramos que o fato de o livro aparecer na Pesquisa de Livros do Google não significa que ele pode ser usado de qualquer maneira em qualquer lugar do mundo. As consequências pela violação de direitos autorais podem ser graves. Sobre a Pesquisa de Livros do Google A missão do Google é organizar as informações de todo o mundo c torná-las úteis e acessíveis. A Pesquisa de Livros do Google ajuda os leitores a descobrir livros do mundo todo ao m esmo tempo em que ajuda os autores e editores a alcançar novos públicos. Você pode pesquisar o texto integral deste livro na web, em |http : //books . google . com/| HARVARD COLLEGE LIBRARY Anciã Eterna JuLiA Lopes de Almeida. Júlia Lopes de ^Imeida / Anciã Eterna,, H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR 71, RUA OO OUVIDOR, 71 RIO DE JANEIRO 6, RUK DBS SAINTS-PÊRSS, 6 PARIS 1903 V. '•li ':>v / ^f\LC^:íí,l. O.Fr . EOWIN VERNON MORGAN Of '. 22, 1915. /^ w HARVARD UNIVERSITY UBRARY JAH0 7 1991 Cosi ma fata la natura. Gabriele d'Annunzio. ... Quem poderá conter a palavra concebida? {Livro de Job, capitulo iv, v. 2.) í r OBRAS DA MESMA AUTORA Traços e Illuminuras, contos. A Família Medeiros, romance. A Viuva Simões, romance. Memorias de Martha, novella. O Livro das Noivas. A Fallencia, romance. Historias da Nossa Terra, contos para creanças. De collaboração : Contos Infantis, com Adelina Amélia Lopes Vieira. A Casa Verde, romailce, com Filinto de Almeida^ ANCIÃ ETERNA A JOÃO LUSO E o teu livro? quando apparece o teu livro? perguntou Rogério Dias ao amigo, refestelando^se numa almofada de marroquim do escriptorío. — Parece-meque nunca... — Porque?! — Por isto : o que eu. quero não é escrever meramente; não penso em deliciar o leitor escor- rendo-lhe n'alma o mel do sentimento, nem em dar-lhe commoções de espanto e de imprevisto. Pouco me importo de florir a phrase, fazèl-a can- tante ou rude, recortal-á a buril ou golpeal-a a machado ; o que eu quero é achar um engaste novo onde encrave as minhas idéas, seguras e claras como diamantes; o que eu quero é crear todo o meu livro, pensamento e forma, fazèl-o fora doesta arte de escrever já tão banalisada, onde me em- baraço com a raiva de não saber fazer nada de melhor. Estamos sós ; sabes que sou comtigo ab- solutamente sincero ; dirte-ei tudo. 1 2 ANCIÃ ETERNA Quero escrever um livro novo, arrancado do meu sangue e do meu sonho, vivo, palpitante, com todos os retalhos de céo e de inferno que sinto dentro de mim; livro rebelde, sem adu- lações, digno de um homem. Se eu tivesse génio, não me faltaria o resto, porque não escrevo por amor da turba ingrata, nem preciso da penna para ganhar a vida ; sou rico e só escrevo por uma obsessão que me verga, tal como o furacão verga o canniço. Não te rias; a ordem vem do incognoscível, não a discuto, acceito-a como uma lei de Deus. E não cuides que a acceítei sempre com resignação e sem reluctancia; tenho rasgado muitas paginas, incendiado muitas palavras, assoprado muita cinza aos quatro ventos ! Ao principio, ma) desfazia uma pagina achava- me a fazer outra. Este martjTio ainda dura; todo o meu protesto de acabar fica onde começa o desejo de crear mais e melhor. Posto o ponto final em um livro, abre-se-me logo a vontade de es- crever o primeiro período de outro livro. E é sempre assim; afinal, porque e para que? se os velhos como os novos trabalhos não me trazem á consciência nem gloria nem tranquillidade ? Para que? não sei... Porque? porque é preciso obedecer, porque a natureza me fez tal o canniço... E a propósito dir-te-ei que a natureza foi crue 1 para mim, visto que o meu ser moral não se con. funde com o meu ser intellectual. Não nasci para ANCIÃ ETERNA Ó escriptor, sou orgulhoso, a popularidade offende- me; não sei que melindre é este, que antes cresce do que diminue com o correr do tempo, fa- zendo-me cada vez mais sensivel e descontente de mim mesmo. De que vale tanto esforço? Es íntelligente, vè se entendes isto : embora eu não me preoccupe com o leitor, ha sempre deante de mim, quando escrevo, um desconhecido, som- bra no vácuo, indecisa, impalpável, mas que basta para enregelar-me os dedos quando a phrase quer cahir despida e franca na brancura do papel. Ah ! o preconceito ! o preconceito ! E é uma creatura atada a elle, e assim orgu- lhosa e timida, que pensa em fazer um livro sa- dio, calmo, de regeneração e de esperança, como inicio de outra vida mais perfeita. Mas como hei- de eu, dependente e fraco, fazer tal livro inde- pendente e forte? Eu, que pratico o mal, não posso sem ironia ensinar o bem. A minha bocca, que mente, o meu pensamento, que atraiçoa, não são dignos de fazer uma apotheose á verdade absoluta, como a única fonte da felicidade humana. O livro a que alludiste éo meu martyrio : penso nelle á proporção que vou fazendo os outros, e sinto-o sempre á mesma distancia, inattingivel e sereno. O meu livro ! mas qual será o escriptor, que não pense no seu livro definitivo, único? Dize ! — Que hei de dizer? Que, talvez, mudando de hábitos alcançasses a tranquillidade necessária para um bom trabalho. Gasa-te. ANCIÃ ETERNA — >Yio« Eu traria para casa unia inimiga. Por rníún doce e modesta que fosse, ella teria a pouco c pouco ciúmes d'isto tudo... As leituras são »tiHorvcnO;H, e as mulheres não admittem prete- ríí;òc», Tém razfio, talvez. Do tnaíH a mnis eu tenho medo das mulheres... Vou nfforn cont4)r-te, com muita opportunidade, o tnm ultimo episodio amoroso, que bem pôde ^r^rvir de nynthese a tudo que te disse. — A r<;«[)eíto do livro ?! «— Him.,, podeff pôr dentro d*esse sonho este onitv Monho, ci^rto de que a solução será a mesma. ÍUúxH^me mandar vir café. Tu jantas hoje com- migo. «» Him, Jantarei comtigo. «^ Minha mãe vae fícar contentíssima; não imaginas, ^itá linda, com os cabellos brancos; iltâ, mitnpm muito direita... Chamo-lhe a mi- nha torre da fé, illuminada ! E^euta agora a tal historia ; é pequenina. Entrei um dia com um amigo no Passeio Pu- hlíco, com o pretexto de combinarmos a collabo- ra<;ão de um drama. Hentámo-noa num banco, na alea esquerda, tembra-me bem ; e emquanto eu fazia o meu ci- garro, etle começou a expor o seu plano. A idca era d^elle. Eu ao principio ouvia-o com attenção, aem deixar por isso de olhar para duas creanças, veatidaa á inglesa, que brincavam pela alea ANCIÃ ETEllXA 5 ensombrada. Em frente a nós, num outro banco de pedra, duas moças conversavam baixinho. É muito frequente em mim pensar parallela- mente em dois factos differentes, até que um ab- sorva o outro. Sem deixar de comprehender o magnifico as- sumpto do meu amigo... o Josino, conheces? pois é esse; sem deixar de o ouvir, eu pensava na doçura que deveria haver em ser-se pae de umas creanças como aquellas que alli estavam, tão lindas e tão bem lavadas. Tal pensamento fez-me voltar os olhos para as duas moças. Uma, mais alta e mais nutrida, era evidentemente a mãe das creanças; tinha nocoUo os chapéus de palha á marinheira^ e chamava de vez em quando os pequenos para arranjar-lhes o cabello e com- pòr-lhes a toiUtte. Â outra, mais franzina, era de uma belleza singular e commovente. Trazia um vestido de lã simples e um chapeuzinho de palha que mal lhe encobria a trança loira e grossa. Todos os seus traços eram regulares; mas, de tudo, o que mais me impressionou, viva e ex- traordinariamente, foram os seus olhos, de um azul escuro, triste, onde me pareceu sentir uma alma grande, séria, capaz de todas as luctas e de todos os sacrificíos. Nunca vi uns olhos assim. Num instante, desvíando-se da companheira, elles voltaram-se para os meus... e não te posso ex- plicar a sensação deliciosa que me agitou. To- das as minhas maguas negras se purificaram 6 ANCIÃ ETERNA áquella luz; assaltou-me logo uma idéa : eu podia ter um chalet, num canto de arrabalde, onde as rosas trepassem para o telhado e em que duas creanças saltassem no jardim, emquanto a mãe as vigiasse de um banco, como aquella que alli estava em frente. A minha vida não se consu- miria na febre de um desejo vão; teria um lar feito por mim, risonho e confortável. Os olhos azues da moça diziam-me no seu brilho discreto e sagrado : — Eu farei a tua felicidade. Sou educada, sou activa, sou modesta ; comprehendo e amo as artes e tenho o coração aberto para as ternuras conju- gaes e maternas. Vé como sou simples. Fixámo-nos longamente. Aquelles olhos não se desviaram dos meus com o pudor pretencioso das moças, nem tampouco tiveram arrogância ou malícia : continuaram serenos e claros, tristes sem affectação, com uma franqueza de alma limpa. Juncta a isto a belleza das ultimas horas do sol e o perfume das dracenas em flor. Acredita que o perfume é o cúmplice de muitas paixões, muitas I Quando sahimos do Passeio ainda ellas lá fica- ram. Durante a noite pensei varias vezes na- quelles olhos azues. Nesse tempo minha mãe estava fora, tinha ido fazer a sua estação em Cal- das, de modo que ao meu quarto faltava o apuro a que me acostumara. Pela primeira vez vi pó no ANCIÃ ETERNA / espaldar da minha cama, e encontrei gelhas nos lençóes : No dia seguinte, a minha mesa de trabalho, com o tinteiro transbordante e o cálice de co- gnac sujo, irritou-me; e ao almoço, mal servido, lamentei a falta de uma salinha de jantar, alegre, onde os olhos azues da minha esposa tivessem observado e prevenido tudo... Que influencia profunda pode ter no destino, já determinado pela vontade de um homem, o sim- ples relancear dos olhos de uma mulher ! Porque voltava assim ao meu espirito aquelle clarão azul? Decididamente, eu encontrara a realização da minha ventura — o casamento. Arte? ora adeus! fazer arte aqui, para que, para quem? Não valia a pena sacrificar o coração pela liber- dade de artista e de bohemio. Assim pensei, e fiz-me piegas como um namorado de quinze annos. Acreditarás que eu ia todos os dias ao Passeio Publico? Percorria-o inutilmente: não a encon- trava nunca; em todo caso não desistia, a espe- rança de vér os olhos azues guiava-me atravez das ruas ensombradas. Se as arvores fallassem, que diriam de mim aquellas arvores ! Que idyl- ios, que lindos devaneios tive alli ! eram verda- deiros sonhos de adolescente, perfumando a vida profanada do homem disilludido e amargo. EUa já tinha para mim uma designação purís- sima, era a 7ninha noiva, e eu procura va-a, pare- 8 AXCIA ETERNA cendo-me que só com o vél-a os meus dias se tornariam risonhos e plácidos. Vèl-a não era tudo; eu queria ser visto, ser notado; queria fallar-lhe, ouvir-lhe a voz, dizer-lhe que a amava! E tudo me parecia fácil, desde que a encon- trasse ! Exactamente no dia em que entrei no Passeio mais desanimado, e certo da inutilidade da pro- cura, foi que vi, no mesmo banco, a doce ma- mãe, com os chapéus dos filhos nos joelhos, e a . seu lado a beatificada da minha alma. Nunca senti o coração bater-me com tanta força. Ella voltára-se para mim, via-me ir chegando... Não te posso dar uma idéa da minha commoção : eu nem sabia onde pisava, quando um acaso me favoreceu : uma das creanças cahiu a poucos passos de mim e abriu a bocca num choro de assustar e pôr a nado os patos. Tomei-a immediatamente nos braços e levei-a, depois de a acariciar, ás duas moças. A mãe ergueu-se, e veio apressadamente ao meu encontro, agradecendo muito; a outra ficou sentada. Gumprimentei-a timidamente; não me respondeu. Gorei, ínterdicto. A mamãe então mur- murou com tristeza, indicando-a com um gesto, num tom de desculpa : — Écéga... o CASO DE RUTH A VALENTIM MAGALHÃES^ Pode abraçar sua noiva ! disse com bambalea- duras na papeira flácida a palavrosa baroneza Montenegro ao Eduardo Jordão, apontando a neta, que se destacava na penumbra da sala como um lirio alvíssimo irrompido d'entre os florões gros- seiros da alcatifa. EUe não se atreveu, e a moça conservou-se impassivel. — Não se admire d'aquella frieza. Olhe : eu sei que Ruth o ama, não porque ella o dissesse — esta menina é de um recato e de um melindre de envergonhar a própria sensitiva — mas porque toda ella se altera quando ouve o seu nome. O corpo treme-lhe, a voz muda de timbre e os olhos brilham-lhe como se tivessem fogo lá por dentro. Outro dia, porque uma prima mais velha, senhora de muito respeito, ousasse pôr em duvida o seu bom caracter, a minha Ruth 1. 10 ANCIÃ ETERNA fez-se de mil cores e taes coisas lhe disse que nem sei como a outra a aturou ! Toda a gente percebe que ella o ama ; mas é uma obstinada e lá guarda comsigo o seu se- gredo... Agora, que o senhor vem pedi.l-a, éque eu lhe declaro que estava morta por que che- gasse este momento. Apreciei-o sempre como um coração e um espirito de bom quilate. — Oh! minha senhora... — Não lhe faço favor. Além d'isso, Ruth está com vinte e três annos ; parece-me ser já tempo de se casar. Ha de ser uma excellente esposa : é bondosa, regularmente instruida, nada temos poupado com a sua educação ; e se não apparece e não brilha muito na sociedade é pelo seu excesso de pudor. Eu ás vezes scismo que esta minha neta é piira de mais para viver na terra. Todas as pessoas de casa teera medo de lhe ferir os ouvidos e escolhem as palavras quando faliam com ella. Não admira : a mãe teve só esta filha e foi rigorosissima na escolha das mestras e das amigas ; o padrasto tratava-a também com muita severidade, embora fosse carinhoso. Um santo homem ! Desde que elle morreu que nos íalta a alegria em casa... A mulher, coitada, como sabe, ficou paralytica ; e esta pequena mesmo tornou-se melancholica e sombria. A's vezes penso que ella fez voto de castidade, tal é o seu recato ; desengano-me lembrando-me de quanto é moderada na religião e de que o seu bom senso o CASO DE RUTH 11 se revelia em tudo ! O que tenho a dizer-lhe, portanto, é isto : Affirmo-lhe que Ruth o adora e que não ha alma mais cândida, nem espirito mais virginal que o seu. Ahi a deixo por alguns minutos ; se é o respeito por mim que lhe tolhe as palavras, concedo-lhe plena liberdade. Eduardo fixou na noiva um olhar apaixonado. Na sua brancura de pétala de camélia não tocada, Ruth continuava em pé, no mesmo canto som- brio da sala. Os seus grandes olhos negros chis- pavam febre e ella amarrotava com as mãos, len- tamente, em movimentos apertados, o laço branco do vestido. A baroneza accrescentou ainda, carregando nas qualidades da neta e fazendo ranger a cadeira de onde se erguia : — Ruth nunca foi de lastimeiras, e, apezar de mimosa e de apparen temente frágil, tem boa saúde. Um bom corpo ao serviço de uma excel- lente alma. Dirão : < Estas palavras ficam mal na tua bocca!... » Pouco importa; são a verdade. Tenho outras netas, filhas de outras filhas ; tenho criado muitas meninas, minhas e alheias, mas em nenhuma encontrei nunca tanta doçura, tanta altivez digna e tanta pudicicia. Ahi Ih'a deixo; confesse-a ! A velha sahiu. Todos os rumores da rua rolaram confusa- mente pela sala. A porta que se abriu e fechou trouxe, numa raja de luz, os repiques dos sinos, 12 ANCIÃ ETERNA O rodar dos vehiculos, o sussurro abominável da cidade atarefada ; mas também tudo se ex- tinguiu depressa. A porta fechou-se, as janellas voltadas para o jardim mal deixavam entrar a claridade, coada por espessas cortinas corridas, e os noivos ficaram sós, silenciosos, contemplan- do-se de face. * * O finado barão fora um colleccionador afin- cado de moveis e de outros objectos dos tempos coloniaes. Súbdito de|D. João VI, de que a sua adorável memoria acusava ainda todos os traços já aos noventa annos,'era sempre o seu assumpto . predilecto a narração dos successos históricos presenciados por elle. A' proporção que se ia afastando dos seus dias de moço, mais aferrado se fazia aos gostos e ás modas do seu tempo. Só se servia em baixella assignada com os emblemas da casa bragantina e a propósito de qualquer coisa dizia, fincando o queixo agudo entre o indicador em curva e o poUegar : — « Lem- bro-me de uma vez em que a D. Carlota Joaqui- na »... Ou então : — « Em que D. João VI, ou D. Pedro I, » etc. E em seguida lá vinha a descripção de um Te-Deuniy ou de uma procissão, a que a sua imaginação facultosa emprestava as mais brilhantes pompas. A familia tinha um sor- riso condescendente para aquelle apego, já sem o CASO DE RUTH 13 curiosidade, á força de ouvir repetir os mesmos factos. Os amigos evitavam locar, de leve que fosse, em assumptos politicos, receosos da lon- gura do capitulo que o barão a propósito lhes despejasse em cima ; mas só elle, o bom, o íiel, nada percebia, e, com os olhos no passado, toca a citar ditos e attitudes dos imperadores e a curvar-se numa idolatria pelo espirito boníssimo da ultima imperatriz. Alguma coisa d'isso se reflectia em casa : tudo alli era sóbrio, monótono e saudoso. Cadeiras pesadas, de moldes coloniaes, largas de assento, pregueadas no coiro lavrado de co- roas e brazões fidalgos, uniam as costas ás paredes, de onde um ou outro quadro sacro pendia des- guarnecido e tristonho. Assim o quizera elle, que até mesmo na hora suprema rejeitara um bello crucifixo que lhe oflferecia o padre, voltando os olhos supplice- mente para ura outro crucifixo mais tosco, er- guido sobre a com moda, e que pertencera a D. Pedro I. Para elle, naquella cruz não estava só oChristo; estava, de envolta com o respeito pelos monar- chas extinctos, a lembrança dos seus folguedos de moço. Talvez mesmo, num volteio súbito da memoria, se lembrasse das festas religiosas em que namorara, á sombra dos conventos, a sua primeira mulher, e beliscara com freimas amoro- sas os braços gordos de Janoca, a mulatinha 14 ANCIÃ ETERNA mais faceira de então... Quem sabe? talvez que na hora da morte não se possa só a gente lem- brar das coisas serias. Qualquer hora vivida pôde ser recordada rapi- damente, sem tempo de escolha. Como a Janoca não pertencera á historia, a familia ignorou-a ; e pelo ar gélido d*aquella galeria de espectros palacianos não apparaceu nem um requebro quente de mulatinha risonha, que lhes desmanchasse a compostura. Depois de viuva, a segunda baroneza reformara algumas coisas e confundira os estylos, pondo no mesmo canto um contador Luiz XV, um movei da Renascença e uns tapetes modernos, entre lar- gos reposteiros de seda côr de marfim. Aqiiella extravagância não conseguira quebrar a severidade do todo. Tinha uma physionomia casta e grave aquella sala. As virgens dos quadros, de longo pescoço arqueado e rosto pequenino, gosavam alli o doce socego de uma meia tinta religiosa. Mas lá dentro, os dias passavam-se entre o tropel da creançada, os sons do piano de Ruth e a confusão dos criados. E era por isso, que todos fugiam lá para den- tro e que só Ruth, nas suas horas de inexpli- cável tristeza, se encerrava alli, em com- panhia da Madona da Cadeira e da Virgem de S. Sixto. o CASO DE RUTH 15 Era nessa mesma sala que ella estava ainda, muda e pallida, em frente do seu amado. — Ruth... balbuciou Eduardo. Mas a moça interrompeu-o com um gesto e disse-lhe logo, com voz segura e firme : — Minha avó mentiu-lhe. O noivo recuou, num movimento de surpreza ; oi ella quem se approximou d*elle, com esforc^o arrogante e doloroso, deslumbrando-o com o ful- gor dos seus olhos bellissimos, bafejando-lhe as faces com o seu hálito ardente. — Eu não sou pura ! Amo-o muito para o en- ganar. Eu não sou pura ! Eduardo, lívido, com latejos nas fontes e pal- pitações desordenadas no coração, amparou-se a uma antiga poltrona, velha relíquia de D. Pedro I, e olhou espantado para a noiva, como se olhasse para uma louca. Ella, firme na sua resolução, muito chegada a elle, e a meia voz, para que a não ouvissem lá dentro, ia dizendo tudo : — Eoi ha oito annos, aqui, nesta mesma sala... Meu padrasto era um homem bonito, forte; eu uma creança innocente... Domínava- me ; a sua vontade era logo a minha. Ninguém sabe ! oh ! não falle ! não falle, pelo amor de Deus ! Escute, escute só ; é segredo para toda a gente... No fim de quatro mezes de uma vida de luxuria infernal, elle morreu, e foi ainda aqui, nesta sala, entre as duas janellas, que eu o vi morto, extendido na eça. Que libertação, que 16 ANCIÃ ETERNA alegria que .foi aquella morte para a minha alma de menina ultrajada ! Elle estava no mesmo logar em que me dera os seus primeiros beijos e os seus infames abraços ; alli ! alli ! oh, o damnado! mais do que nunca lhe quero mal agora ! Não falle, Eduardo ! Minha avó morreria, soífre do coração; e minha mãe ficou paralytica com o desgosto da viuvez... Desgosto por aquelle cão! e ella ainda me manda rezar por sua alma, a mim, que a quero no inferno ! A*s vezes tenho Ímpetos de lhe dizer : « Limpa essas lagrimas ; teu marido deshonrou tua filha, foi seu amante durante quatro mezes... » Calo-me piedosamente; e acodem todos : que não chorei a morte d'aquelle segundo pae e bom amigo ! t — É isto a minha vida. Cedi sem amor, pela violência ; mas cedi. Dou-lhe a liberdade de restituir a sua palavra á minha família. Ruth fallára baixo, precipitando as palavras, toda curvada para Eduardo, que lhe sentia o aroma dos cabellos e o calor da febre. Em um ultimo esforço, a moça fez-Ihe signal que sahísse e elle obedeceu, curvando-se deante d'ella, sem lhe tocar na mão. 4: O outro está morto ha oito annos... ninguém o CASO DE RUTH 17 sabe, só ella e eu... Está morto, mas vejo-o deante de mim ; sinto-o no meu peito, sobre os í meus hombros, debaixo de meus pés, nelle tro- peço, com elle me abraço em uma lucta que nao venço nunca ! Ninguém sabe... mas por ser igno- rada será menor a culpa ? Dizem lodos que Ruth é puríssima ! Assim o crêem. Deverei contentar- me com essa credulidade? Bastará mais tarde, para a minha ventura, saber que toda a gente me imagina feliz? O meu amigo Daniel é felicis- simo, exactamente por ignorar o que os outros sabem. Se a mulher d'elle tivesse tido a coragem de Ruth, amal-a-ia elle da mesma maneira? Se a minha noiva não me tivesse dito nada, não seria o morto quem se levantasse da sepultura e me viesse relatar barbaramente as suas horas de vo- lúpia, que me fazem tremer de horror! E eu, ignorante, seria venturoso, amaria a minha esposa, á sombra do maior respeito e com a mais doce protecção... E assim?! Poderei sempre conter o meu ciúme e não alludir jamais ao outro ? Elle morreu ha oito annos... ella tinha só quinze... ninguém sabe! só ella e eu!... e ella ama-me, ama-me, ama-me ! Se me não amasse e fosse em todo caso minha noiva dir-me-ia do mesmo modo tudo? Não... parece-me que não... não sei... se me não amasse... nada me diria! D'ahi, quem sabe? Amo-o muito para o enganar.., parece-me que lhe ouvi isto! Se eu pudesse esquecel-a ! Não devo adoral-a assim ! 18 AXCIA ETERNA E' uma mulher deshonrada. A pudica aoucena de envergonhar sensitivas é uma mulher deshon- rada... E eu amo-a! Que hei de fazer, agora? Abandonal-a... nào seria digno nem generoso... Âquella confissão custou-lhe uma agonia ! Se ella não fosse honesta não affrontaria assim a minha cólera, nem se confessaria áquelle que amasse só para não sentir a humilhação de o enganar. E o que é por ahi a vida conjugal senão a mentira, a mentira e, mais ainda, a mentira ? O outro está morto... ninguém sabe, só ella e eu ! Ella e eu ! e que nos importam os outros, tendo toda a magua em nós dois só?! Antes todos os outros soubessem... Nào ! Que será pre- ferível — ser desgraçado guardando uma appa- rencia digna, ou... ? Não ! em certos casos ainda ha alguma felicidade em ser desgraçado... Ella ama-me... eu amo-a... elle morreu ha oito annos... jà nem lhe faliam sequer no nome... Ninguém sabe ! ninguém sabe... só ella e eu ! Eduardo Jordão passava agora os dias em uma agitação medonha. Attrahia e repellia a imagem de Ruth, até que um dia, vencido, escreveu-lhe longamente, amorosamente, disfarçando, sob um manto estrellado de palavras de amor, a irreme- diável amargura da sua vida. c Que esquecesse o passado... elle amava-a... o tempo apagaria essa idéa,e elles seriam felizes, completamente fehzes. » O casamento de Ruth alvoroçava a casa. A o CASO DE RUTH 19 baroneza occupava toda a gente, sempre abun- dante era palavras e detalhes. Só Ruth, ainda mais arredia e séria, se encerrava no seu quarto, sem intervir em coisa alguma. Relia devagar a carta do noivo, em que o perdão que ella não solicitara vinha envolvido em promessas de esquecimento. Esquecimento ! como se fosse coisa que se pudesse prometter ! A moça, de bruços na cama, com o queixo fin- cado nas mãos, os olhos parados e brilhantes, bem comprehendia isso. Entraria no lar como uma ovelha batida. O per- dão que o noivo lhe mandava revoltava-a. Pedira- lhe ella que lhe narrasse a sua vida d'elle, as suas faltas, os seus amores extinctos ? Não teria elle comprehendidu a enormidade do seu sacrifício? Seria cego? seria surdo?... dono de um coração impenetrável e de uma consciência muda ? As suas mãos estariam só tão aiTeitas a caricias que não procurassem estrangulai a no terrível instante em que ella lhe dissera — eu não sou pura ? Ou então porque não a ouvira de joelhos, compene- trado d'aquelle amor, tão grande que assim se desvendava todo?! Elle promettia esquecer! mas no futuro, quando se enlaçassem, não evocariam ambos a lembrança do outro? Talvez que, então, Eduardo a repellisse, a deixasse isolada no seu leito de núpcias, e fugindo para a noite livre fosse chorar lá fora o sonho da sua mocidade... Sim, a sua noite de núpcias seria uma noite de 20 ANCIÃ ETERNA inferno ! Se elle fosse generoso ella adivinharia atravéz da doçura do seu beijo os resaibos da lembrança do primeiro amante ; e quanto maior fosse a paixão, maior seria a raiva e o ciúme. Esquecimento !... sim... talvez, lá para a velhice, quando ambos, frios e calmos, fossem apenas amigos. Ruth pensou em matar-se. Viver na obsessão de uma idéa humilhante era demais para a sua altivez. Desejou então uma morte suave, que a le- vasse ao tumulo com a mesma apparehcia de ce- cém cândida, de envergonhar a própria sensitiva. Queria um veneno que a fizesse adormecer sonhando ; e quanto dera para que nesse sonho fosse um beijo de Eduardo que lhe pousasse nos lábios ! De lucto a casa. Ramos e coroas virginaes entravam a todo o instante. Quem saberia expli- car a morte de Ruth? foram achal-a extendída na cama, já toda fria. Agora estava entre as duas janellas, na grande sala sombria, espalhando sobre o fumo da eça as ' suas rendas brancas e o seu fino véo de noiva. Parecia sonhar com o desejado esposo, que alli estava a seu lado, pallido e mudo. Entravam já para o enterro e foi só então que uma voz disse alto, sahindo da penumbra d*aquella sala antiga : o CASO DE RUTH 21 — Vae ficar com o padrasto, no mesmo ja- zigo... Eduardo fixou a morta com doloroso espanto. Estava linda ! Na pelle alvíssima nem uma som- bra. Os cabellos negros, mal atados na nuca, desprendiam-se em uma madeixa abundante, de largas ondas. — Que ! seria ainda para o outro aquelle corpo angélico, tão castamente emmoldurado nas roupas do noivado ? Seria ainda para o outro aquella mocidade, aquella creatura divina, que deveria ser sua?! E a mesma voz repetiu : — Vae ficar com o padrasto... Com o padrasto, noites e dias... fechados... unidos... sós! Fora para isso que ella se matara, para ir ter com o outro ! aquelle outro de quem via o esqueleto torcendo-se na cova, de braços ex- tendidos para a reconquista da sua amante ! Allucinado, ciumento, Eduardo arrancou então num delirio o véo e as flores de Ruth, e incli- nando um tocheiro pegou fogo ao panno da eça. E a todos que acudiram nesse instante pareceu, que viam sorrir a morta em um extasi, como se fosse aquillo que ella desejasse... A ROSA BRANCA A MAGALHÃES DE AZEREDO A viuva do commandante Henriques dizia a toda a gente que, das suas duas netinhas, dava prefe- rencia á primeira; demonstrando pela segunda uma sympathia mediocre. Gommentava cada um a seu modo aquella excentricidade de velha romântica. O verdadeiro motivo, porém, consistia em ser a neta mais velha extraordinariamente parecida com a família Henriques, emquanto que a mais moça pertencia toda à familia do pae, um provinciano feio. Angela, que era a primeira, recebia continuamente pre- sentes da avó; a outra, a Ignez, olhava com melancholia para aquellas doces manifestações de amor, perguntando mentalmente em que des- mereceria ella da ternura da mãe de sua mãe*? Acostumaram-se todos com aquella injustiça, menos a pobre Ignezínha, que chorava muitas vezes ás occultas, chamando-se desgraçada !... 24 ANXIA ETERNA Com O tempo veio a necessidade de Angela en- trar para um collegio, A avó lamentou-se, tornando-se ainda mais indifTerente para a pobre Ignez e atirando-lhe para cima todas as culpas; era ella quem quebrava a louça que se sumia do armário; era ella que fazia enxaquecas á mãe com a bulha dos seus sapatos insupportaveis ; era ella quem arrancava as plan- tas do jardim e quem roubava os doces do guar- da-prata ; era ella quem batia nos animaes, quem riscava os moveis, quem enchia de trapos e de papeis o chão, quem impacientava as criadas e pedia dinheiro ás visitas. Ella era o demónio! e, na sua opinião, seria muito mais sensato mandal-a de preferencia para o collegio, como pensionista, e deixar em casa a Angela, a quem se offerecia para pagar os mes- tres. O alvitre não foi bem recebido. E Angela teve de partir para Itú, logar escolhido para a sua educação. Na véspera, á noite, recahindo a conversa sobre assumptos de presentimentos e de superstições, Angela teve a phantasia de dizer á avó : — Olhe, vovó, todas as manhãs ha de vér no seu oratório uma rosa branca. Serà o meu pensa- mento que ha de vir visital-a. No dia em que a rosa estiver meio murcha, será um signal de que eu estou doente; e se ella não apparecer, será porque eu morri I A ROSA BRANCA 25 — Deixa-te do tolices ! Nâo quero que minha filha leve de casa semelhantes idéas ! Acreditarás por acaso nisso ? — Não, mamàe... eu estava brincando... Des- cance que a rosa branca não ha de vir ! Do seu canto, a pobre Ignez observou que o olhar da avó se tornara angustioso, turvo como a agua onde se reflectisse uma nuvem negra. A pobre senhora acreditava em sonhos e em phan- tasmas; sabia historias complicadas e extrava- gantes; coisas extraordinárias que ella queria impor á fé ou á incredulidade dos outros ! Já agora, se a rosa branca não surgisse todas as madruga- das aos pés da Virgem das Dores, ella havia de suppôr que a sua Angelita tinha ido fazer com- panhia aos cherubinsi E eraquanto a sua preferida dizia descuidada e risonha: « Eu estava brincando...» a outra lia-lhe no olhar toda a inquietação e tristeza ! A despedida de Angela foi dolorosa para o cora- ção da avó; a pobre senhora levou o dia inteiro a chorar, encerrada no quarto, e, quando consentiu em ir ao chá, notaram todos a extraordinária alteração da sua physionomia. Estava impaciente, phrenetica, olhando de soslaio para a pobre Ignez, com quem varias vezes ralhou sob qualquer pre- texto : — Menina, isso são modos? Tire a mão da mesa ! 2 26 ANCIÃ ETERNA E continuava depois, voltando-se para uma visita : — Tanto tem a Angelita de ajuizada e de boa, quanto esta tem de insensatez e máu génio! Pudera! fazem-Ihe todas as vontades! Eu nunca vi! A mãe acudiu em defesa da filha, e a questão prolongou-se, até que a avó, desesperada, ex- clamou : — A outra foi aos onze annos de pensionista para o collegio; pois bem, esta tem nove, e aposto em como nem d*aqui a três annos irá acompanhar a irmã 1 Injustiças é que me revoltam. Ignez ouvia humilhada e triste aquella troca de palavras, consolando-se com a doçura do olhar da mãe, que cabia sobre ella como uma bençam. No seu pequeno quarto, em frente á cama vasia da irmã, Ignezinha procurava em vão adormecer. Revolvia-se entre os lençóes, olhava para o tecto, onde a luz da lamparina punha sombras, e lem- brava-se do olhar da avó, quando a Angela fallara na rosa branca! Ah! por que lhe quereria tanto mal a sua avó? No entanto, procurava fazer-lhe as vontades, c tinha-lhe até muita amisade ! Real- mente, a Angela era tão boa ! e tão bonita ! Sim, ella também achava natural que a velhinha preferisse a outra. . . Mas seria razoável que a depri- misse sempre, e assim... deante de gente de fora? Tentava dormir : fechava os olhos e punha-se a rezar : A ROSA BRANCA 27 — AvCy Maria, cheia de r/vaçal,.. E a rosa branca? ah I se a vovó não a encontra no orató- rio... c capaz de chorar! Fazei, virgem Maria, com que nas<;a uma rosa branca a vossos pés I Se fosse eu que estivesse no collcgio, a vovó estaria contente! Porque será que não gosta de mim? E' verdade que eu lhe tenho feito mal, mas sem ser por vontade... entornei-lhe chá quente na mão... quebrei o seu espelho novo ; mas o que com certeza ella não me perdoa, é eu ter batido na Angela ! Coitadinha da Angela ! ella não se queixou... quem teria visto? mas se eu não lhe batesse,. ella matava o gato da visinha, e depois? Sim! a vovó tem-me raiva desde esse dia... mas eu tenho dado tantos beijos na Angela ! Pobre da minha irmã, que saudade ella hoje terá da sua caminha ! Apezar dos meus beijos, a amisade da vovó não voltou. Mamãe sempre me diz que não julgue eu isso, que a vovó adora-me I como o saberá ? Mas a mamãe não mente; logo que diz, é porque é. Com as mãozinhas cruzadas sobre o peito, toda envolvida na sua longa camisa de dormir, Ignez luctava com a insomnia, e, para afastar os pen- samentos, recomeçava a dizer : Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é comvosco... No entanto, antevia as mãos tremulas da avó, procurando em vão a rosa branca entre as dobras do velludo azul do manto de Nossa Senhora. De- pois as lagrimas cahindo-lhe ás duas pela face > 28 ANCIÃ ETERNA ! engelhada... E tinha pena, e tornava, cheia de fé, a supplicar : — Virgem Maria ! fazei com que nasça uma rosa branca a vossos pés ! A luz da lamparina foi-se tornando pallida, á propon^^o que os vidros da janella se iam illumi- nando pela claridade exterior. Ignez ergueu-se. Nunca tinha visto amanhecer, mas o seu fito era outro; foi cautelosamente á janella, abriu-a e olhou. Nuvens côr de rosa ennovelavam-se sob o céo azul ; no alto, mostrava-sea lua, estreita como um fio de luz arqueado, e um pouco abaixo entre* brilhava uma grande estrella esbranquiçada e fria. Os pássaros cantavam; havia uma frescura leve toda embalsamada de aromas. Ignez espreitou o oratório. — Nada! A lâmpada accesa, bruxoleante, dif- fundia a sua ténue chamma sobre um ramo de flores artificiaes ! Voltou á janella do seu quarto, ao rez do chão ; vacillou um momento, mas, arman- do-se de coragem, saltou-a, e correu para um recanto do jardim, onde varias roseiras ostenta- vam as suas bellissimas flores. A* hora do almoço, a avó appareceu risonha e tranquilla, com o olhar abrandado por uma mys- teriosa doçura d*alma. Passaram-se dias, durante os quaes a pobre senhora achou sempre no seu oratório a promettida rosa branca, que era, a seu ver, a visita do pensamento da adorada netinha! Cada vez mais terna para a ausente, tornava-se A ROSA BRANCA 21) mais ríspida para a Ignez. A pequenita andava agora mais abatida e magra, chegando a inspirar cuidados á familia. A historia da rosa era ignorada por todos ; a avó guardava o segredo da visita de Angela, egoisticamente, conservando as rosas, mesmo de- pois de murchas, num cofrezinho dourado! Um dia, estavam todos á mesa, quando o jar- dineiro se foi queixar de que todas as noites ia alguém roubar uma rosa branca a uma das rosei- ras de mais estimação do jardim ! Da rua não entrava ninguém ; aquillo era coisa de gente da casa; pedia providencias. Ignez tornou-se rubra; a avó estremeceu, c o dono da casa, um colleccionador fanático, promet- teu um tiro a quem, sem seu consentimento, lhe arrancasse as rosas do jardim. A' noite verificou a existência de um formoso botão. No dia seguinte o botão havia desapparecido ! Aquella persistência exasperou-o. Começaram as indagações. A avó julgou de seu dever intervir, contando o facto que se passava comsigo, e acon- selhando paciência. Era a mão invisivel de um ente sobrenatural e piedoso, que vinha, mensa- geiro da sua Angelita, trazer-lhe a flor promettida ! Essa revelação desorientou-os. A pessoa era en- tão, evidentemente, de casa, e tão intima que entrava nos quartos da família ! Houve ameaças... Entretanto, a doce rosa branca, aquietadora dos sustos da avó, apparecia todas as manhãs» fresca 3(j ANXIA ETERNA f f e orvalhada, sob o manto estrellado da mãe de | D íus ! As criadas começaram a suppôr phantasmas, a asseverar que os viam, e de tal forma que a pró- pria Ignez entrou de ter medo ! Uma noite deitou-se resolvida a faltar á sua ca- ridosa lembrança ; a avó que tivesse paciência e apprehensões e lagrimas, — ella não se arriscaria nunca mais para poupar-lhe esses desgostos ! E ficou, como na primeira noite, nervosa, imagi- nando a decepção da velha ! Passou por fim ligei- ramente pelo somno; acordando, viu tamanha claridade na janella, que suppoz ser já dia. Saltou do leito, e, sem meditar, levada pelo habito, ainda quasi a dormir, pulou para o jardim, arrastando na areia a sua camisola branca e maguando no chão os pezinhos descalços. A lua, em todo o esplendor, espalhava a sua luz avelludada ; estava tudo silencioso, silencioso ! Ignez, no meio do caminho, ao ar fresco, com- prehendeu o seu engano : levantara-se alta noite ! A bulha dos seus passos naquella solidão horro- risou-a. Ah ! era a hora dos phantasmas, e ella não ousava olhar para traz ! caminhava sempre, com os lábios seccos e os olhos muito abertos! Foi com um movimento nervoso que arrancou da haste a triste flor piedosa, não ousando observal- a, porque, quando á violência do puxão a roseira balançou os seus botões nevados, afigurou-se-lhe ver uma dança macabra improvisada no ar por A ROSA BRANCA 31 extranhos e pequeninos espectros ! Correu então allucinada para casa, saltou para dentro, e, sem tomar as precauções do costume, entrou no ora- tório precipitadamente e atirou aos pés da Virgem a doce rosa branca, murmurando ao mesmo tem- po, com a voz alterada pelo medo : « Salve, Rai7ilia., Mãe de misericórdia.., vida e doçura... esperança nossa ! » Não acabou. Transida de medo e de frio, cahi- ria no chão... se dois braços não a amparassem meigamente. Eram os braços da avó, que a cobria de beijos, repetindo-Ihe : — Como tu és boa, minha adorada Ignez ! como tu és boa ! os PORCOS A ARTHUR AZEVEDO Quando a cabocla Umbelina appareceu gravida, o pae moeu-ade surras, affirmando que daria o neto aos porcos para que o comessem. O caso não era novo, nem a espantou, e que elle havia de cumprir a promessa, sabia-o bem. Ella mesma, lembrava-se, encontrara uma vezum braço de creança entre as flores douradas do aboboral. Aquillo, com certeza, tinha sido obra do pae. Todo o tempo da gravidez pensou, numa ob- sessão crudelissima, torturante, naquelle bracinho nú, solto, frio, resto d*um banquete delicado, que a torpe voracidade dos animaes esquecera por cansaço e enfartamento. Umbelina sentava-se horas inteiras na soleira da porta, alisando com um pente vermelho de celluloide o cabello negro e corredio. Seguia assim, preguiçosamente, com olhar agudo e vagaroso, as linhas do horizonte, fugindo de fixar os porcos. 34 AXCIA ETERNA aquelles porcos maldictos, que lhe rodeavam a casa desde manhã até a noite. Via-os sempre alli, arrastando no barro os cor- pos immundos, de pelo ralo e banhas descabidas, com o olhar guloso, luzindo sob a pálpebra molle, e o ouvido encoberto pela orelha chata, no egoís- mo brutal de concentrar em si toda aattenção. Os leitões vinham por vezes, barulhentos e ás cam- balhotas, envolverem-se na sua saia, e ella sacu- dia-os de nojo, batendo-lhescomos pés, dando-lhes com força. Os porcos não a temiam, andavam perto, fazendo desapparecer tudo deante da sofre- guidão dos seus focinhos rombudos e moveis, que iam e vinham grunhindo, babosos, hediondos, sujos da lama em que se deleitavam, ou alourados pelo pó do milho, que estava para alli aos mon- tes, flavescendo ao sol. Ah ! os porcos eram um bom sumidouro para os vicios do caboclo ! Umbelina execrava-os e ia pensando no modo de acabar com o filho d'uma maneira menos degradante e menos cruel. Guardar a creança... mas como? O seu olhar interrogava em vão o horizonte frouxelado de nuvens. O amante, filho do patrão, tinha*a posto de la- do... diziam até que ia casar com outra! Entre- tanto achavam-na todos bonita, no seu typo de Índia, principalmente aos domingos, quando se enfeitava com as maravilhas vermelhas, que lhe os Ptuiros 35 davam colorido á pelle bron/eada e a vestiam toda com um cheiro doce e iiKMKjsto... Eram duas horas da madrugada, quando a Umbelina entreabriu' um oÍK, alegre e aíril, num galiio de pitangueira, e foi então uma chuva de coraes e de orvalho so- bre a sua blusa de linlio branco e sobre os seus cat>ellos corredios e negros. Cheio o samburá, ella subiu o pomar até perto de casa. O pae, um homem athletico, estava de pé no meio do terreiro, saboreando um copo de leite. Ao pé d'elle a vacca silenciosa esperava submissa, com o focinho voltado para a luz. Ginóca deu-lhe um (igo. O animal estava acostumado áquellas gulodices, comeu a fructa e lambeu a mão da moça. Acabado o leite, o pae entregou o copo á filha, e esta, abaixando-se, tomou na palma da mão a teta da vacca e ia mungil-a para encher novamente o copo, quando o pae exclamou : — Olha, Ginóca, aquelle que vem acolá, é o Camondongo ! Ora se é ! conheço-o perfeitamente pelo trote! Ginóca levantou-se de um salto ; extendeu a mão sobre as sobrancelhas para vér melhor, e depois de um segundo de observação disse com ar de triumpho : — E\ papae ! lavem Maurício!... assobie para vér se elie ouve ! . . . O velho assobiou estrídulamente. Não se ouviu resposta. Houve um bater de azas apressadas no pomar, e o bem-te-vi calou-se. Ginóca respirou com força, enchendo o peito com o ar impregnado 48 ANCIÃ ETERNA de que o estudante estava á morte no Rio, com febre amarella ! Foi um terror immeiíso ! Ginóca supplicava ao pae que a levasse para junto do noivo; o pae negava-se, e as horas pas- savam lentas e amarguradas. Cessaram as noti- cias e o presentimento da morte tolheu os cora- ções do pae e da filha; elle queria disfarçar, mas não o conseguia, e a Ginóca, já sem lagrimas, muito pallida, parecia uma louca. Uma noite, emquanto o pae dormia, ella ajoelhou-se em frente jo quadro da Virgem e fez, com toda a fé da sua alma castíssima, uma promessa á Mãe de Deus. Quando se levantou, os seus olhos resplandeciam de lagrimas, mas havia uma expressão enérgica de confiança e de paz no seu bello rosto moreno. Nem um soluço quebrou ò silencio da noite. No outro dia de manhã receberam uma carta. Maurício estava salvo. Rebentaram os risos. O velho disse á filha que escrevesse ao noivo, dizendo-lhe para ir conva- lescer em sua casa. Ginóca ria, relendo e beijando a carta. — Sabes que mais? disse-lhe o pae, o casa- mento vae fazer-se já... isto de cuidados e demo- ras não são coisas do meu agrado. Elle que venha e trataremos d'isso. O padre Benedicto ahi está e um altar arma-se num momento! Ginóca suspendera subitamente o riso e tornou se branca como o linho. ^K- o VOTO 47 Na maior parte das manhãs não sabiam do sitio, mas nem por isso se levantavam mais tarde. Quando abriam as janellas, as montanhas de Fri- burgo estavam ainda envoltas num nevoeiro es- pesso, que o sol ia desfazendo numa polvilhação dourada. A estrada, vermelha, serpeava ao longe entre a verdura dos campos e o espreguiçar azu- lado e frio das aguas da cachoeira. Os carneiros balavam á distancia, e no ar fresco e leve cruza- vam-se cantos de aves e aromas de flores. Ginóca, lépida como uma cabrita, descia ao curral e vinha puxando a vacca, a grande vacca branca e preta, que a seguia com olhar melancho- lico e meigo. D*ahi eram as partidas no pomar; os assaltos ás pitangueiras. Maurício trepava á arvore, Ginóca aparava as fructas no avental ; enfeitava a trança negra com as pitanguinhas vermelhas, desfolhava no seio as flores dos limoeiros, e era tudo ale- gria e risadas. Quando voltavam para o almoço, iam impregnados do aroma das hervas e com o rosto ainda húmido da agua, muito transparente e fria, que atravessava a horta, levando na cor- i*ente um ou outro junquilho ou as florinhas dou- radas dos pés de hortaliça. Expirado o tempo das férias, Mauricio voltou ao Rio, e a Ginóca começou a trabalhar com afinco no enxoval. Iam as coisas assim, quando tiveram noticia #• o VOTO 45 de manacá e de ervilhas de cheiro. O coração ba- tia-lhe, as faces cor de jambo maduro fizeram-se- )he vermelhas como rosas de Alexandria. — Pois você não vè como o pobre Camondongo vem depressa ! Aposto em como o diabo do Mau- rício traz esporas ! Vae abrir a cancella, que o teu noivo não tarda... Também, se elle tiver espo- reado o Camondongo, ha de se haver commigo ! — De Friburgo até aqui é longe... respondeu ella, desculpando o noivo. — Longe! Duas léguas mal medidas... Deus me dè annos de saúde, como de vezes as tenho an- dado a pé... Quando tua mãe era viva... Nàocontinou; o rumor das patas do cavallo approximava-se, e a Ginóca deitou a correr para a cancella; o pae seguiu-a sorrindo, e a vacca avançou vagarosamente para o samburá esque- cido no chão, e, com toda a calma, devorou os figos. Maurício era noivo e primo da Ginóca ; estu- dava medicina e só pelas ferias ia passar um tempo em casado tio. Ginóca adora va-o, e o pae acceitava com ale- gria aquelle casamento, porque era doido pelo so- brinho. « Um rapaz de mão cheia ! dizia elle aos amigos, e sabe tantas coisas ! Tem sciencia para dez ! » O que elle temia, era que o moço se corrom- pesse com os livres-pensadoi*es... Religioso, arraigado á egreja, elle queria para 3. 46 ANCIÃ ETERNA genro um homem de crenças seguras no poder infinito do Ser Supremo... — Ora viva o Sr. Maurício ! gritou elle ao so- brinho, que era todo olhos para a Ginóca. — Tio Guilherme... murmurou, abraçando-o, o moço. Trocadas as primeiras expansões, entraram. Na pequena sala de jantar, alegre e rústica, alve- javam a toalha e a louça para o almoço; na pa- rede caiada, ao fundo, sobre uma prateleira de pinho coberta de crochet, um boiào de barro sus- tinha um ramo de rosas de todo o anno, de hor- tencias azues e de alecrim cheiroso. No alto, um quadro da Virgem, em oleographia, com a sua túnica branca e o manto fluctuante, sorria nomeio d'aquella pobreza alegre. O tio Guilherme benzeu-se antes de sentar-se á mesa ; a filha rezou de mãos postas, e Maurício desviou o olhar para a janella, onde uma borboleta azul batia de en- contro aos vidros. O tempo das ferias voou alegremente. As vezes iam a uma propriedade visinha, de uns sitiantes suissos, comprar manteiga fresca ou assistir á colheita das batatas. Ginóca levava sempre uma cestinha que enchia das framboezas da estrada, para dar ás creançasque encontrasse. Maurício auxiliava-a, e o pae ria-se, alegrado pelo amore a mocidade de ambos. Era bem certo que Deus tinha creado aquelles dois um para o ou- tro I o VOTO 4í) — Casar?.., — Então?! — E' impossível! Oh! não me pergunte por- que, papae ; é impossível ! — Ora esta ! O velho suppoz que a filha delirasse e tomou- Ihe o pulso. A moça correu para o interior da casa, e elle, attonito, ficou olhando para o buraco vasio da porta por onde ella tinha fugido. Passou lodo o dia afflicto. Que teria a Ginóca? Resolveu-se a chamar o medico ; mas antes d'isso quiz ainda consultar a filha. Ás Ave-Marías desceram ambos ao pomar. No galho florido de um pecegueiro cantava um sa- biá, e no fundo azul pallido do céo as montanhas de Friburgo desenhavam-se muito escuras. — Olha, Ginóca... por que é que já não que- res casar com teu primo?... perguntou o tio Gui- lherme, com ar constrangido e tímido. A filha baixou a cabeça, silenciosa, vencida pela commoção. — Elle fez-te algum mal, offendcu-te? — Oh ! não ! — Então que teima é essa?! o pobre moço adora-te, e eu, francamente, estava satisfeito... — Eu já não posso casar ! — Hein ! ? Já não podes casar ! que diabo de lin- guagem é essa ? ! 50 ANCIÃ ETERNA Ginóca parou, ergueu para o pae os olhos hú- midos e murmurou : — Fiz um voto... prometti a Nossa Senhora que, se salvasse Maurício da morte, eu ficaria solteira a vida toda... O pae recuou, como se tivesse levado uma pe- drada no coração. Rolaram no ar sereno da tarde as badaladas das Ave-Marias; elle, respeitoso e triste, tirou o chapéo. A Ginóca apoiou-se a um tronco de arvore, soluçando alto. Extincta a ultima vibração do Angelus, o velho disse tremulamente á filha : — Já que fizeste um voto... tens de cumpril-o... EUa abanou afirmativamente a cabeça. Voava por todo o pomar o doce aroma das ameixieiras em flor. E OS CYSNES ? A BAPTISTA COELHO Procurando emoções, ou por uma curiosidade extravagante, a viscondessa de S. Roque leni- brou-se um dia de ir vêr o hospital de alienados do Dr. Aguilar. Descendo do seu coupé dentro do pateo do edi- fício, perguntou ao porteiro pelo director. Não estava ; mas como não devesse tardar, con- duziram-na a um escriptorio ao rez do chão, cheio de armários e de apparelhos eléctricos. A viscondessa sentou-se e olhava para o chão reluzente, quando percebeu uma sombra a desli- sar a seu lado. Voltou-se e viu junto a si uma mulher de uns trinta annos, baixa, clara e delgada, de rosto longo como o dos carneiros e olhos pardos, de expressão dulcissima. Tinha o andar macio como o das freiras, as mãos delicadas, pequeninas e pallidas, e um sorriso que lhe illuminava a phy- 8Íonomia triste e vaga... 52 ANCIÃ ET i: RNA — Deseja alguma coisa ? — Sim... vim pedir permissão ao Dr. Aguilar para vêr o seu estabelecimento. Disseram-me que elle não tarda e mandaram-me esperar aqui... — Se é só isso, não vale a pena cançar-se; elle virá... ou não virá. Em todo o caso promptifico- me a acompanhal-a. — É enfermeira ? — Sim, minha senhora. O que lhe peço é que escreva aqui o seu nome. A enfermeira apresentou, sobre a grande secre- taria de nogueira, o livro em que se inscreviam os visitantes. A viscondessa tirou rapidamente a luva, e mes- mo sem se sentar, apoiou o cotovello na mesa e escreveu. Por traz d*ella a outra esticou muito o pescoço e leu-lhe o nome. Depois, com um sor- riso : — Podemos ir. Sahiram ambas, atravessaram corredores e su- biram escadas. A enfermeira ia adeante, roçando sem bulha nos degraus o vestido molle, de riscadinho azul e branco, coberto na frente por um largo avental de linho pai*do. As sedas da viscondessa farfa- lhavam. — Por aqui... veja, esta é a sala dos doidos pacificos, dizia a enfermeira. Passemos agora á escola das creanças. A senhora não receia impressionar-se? E OS CYSNES ? 53 — >'ão... respondeu a visitante, depois de uma pequena liesi tacão. — É muito triste. Emfim, é bom vér tudo! concluiu a enfermeira. — A senhora... E a viscondessa interrompeu- se para perguntar : — Como hei-dechamal-a? A outra não respondeu logo e ficou pensativa, como se fizesse um esforço para se lembrar do seu nome ; depois disse com um sorriso : — Chame-me... irmã Seraphina; não sou freira, mas fui educada num convento, e os meus irmãos, em casa, por brincadeira, davam-me esse nome. Acostumei-me. — A irmã Seraphina, voltou a viscondessa, pren- dendo o fio do seu pensamento partido, não tem medo de viver aqui ? — As vezes... certamente que os doidos fazem- nos passar bocados perigosos ! . . . mas tenho com- paixão, dediquei-me a isto e já agora hei de en- velhecer ao lado d'elles. Pobre gente! Havia no olhar de irmã Seraphina uma tamanha expi-cssão de piedade e doçura, que a viscondessa sentiu-se commovida e murmurou : — Que anjo! Entraram na escola. Umas dez creanças, espa- lhadas por meia dúzia de bancos, levantaram os narízínhos curiosamente para a visitante. O mesti^ tinha sentado nos joelhos um pequenito, que se encaracolou todo, fazendo-se num novello. Ao 54 ANCIÃ ETERNA mesmo tempo surgiam da aula gritos e guinchos extranhos; um rapaz de dez annos quiz fazer discurso, outro arremedou o miar dos gatos, de uma maneira tão justa e com uma careta tão do- lorosa, que a viscondessa, arrepiada, voltou de- pressa para o corredor. A irmã Seraphina deixou-se ficar para traz e, curvando-se, beijou uma menina, que encostada, á parede contava os dedinhos incessantemente : um, dois, três... Quando voltou para junto da visitante, ella disse com uma voz maguada : — Não a avisei de que se havia de impressio- nar na escola das creanças? Pobres anjos! Eu ainda não me habituei a olhar sem lagrimas para aquelles entezinhos condemnados, por uns pães sem consciência, a uma vida de agonias ! — Condemnados pelos pães ? murmurou com extranheza a visitante. — Certamente. Quem pôde dar uma he- rança tão desgraçada aos filhos, não se casa. Sabe que são victimas da hereditariedade. — Todos?! — A maior parte. Que peccado ! Deveria haver leis que prohibissem certas uniões... O que estas creanças me tèm feito chorar, só de pena ! Algu- mas são más, mordem, batem, causam estragos de toda a ordem. Umas férazinhas inconscientes. Quanto peiores ellas são mais as lamento. É pre- ciso que haja alguém que as ame. Eu sou mais E OS CYSXES ? 55 carinhosa para aquellas a quem ninguém quer bem... Afinal, boas e más correm para mim. Sabe que todas as crean<>\s gostam das aves. — Das aves ? ! — Sim, que tenham azas que as agazalhem. — Ah... A voz da irmã Seraphina era mellillua, escorre- gadia e branda ; uma d'essas vozes cantantes e claras, que uma vez ouvidas nunca mais se esque- cem. Não ha por certo mulher cuja harmonia seja tão completa no seu todo. Deveriam antes cha- mal-a irmã Suavissima ! Atravessaram todo o edifício sem que uma pa- lavra, um gesto da guia alterasse a sua expressão de candura. Todos os doentes lhe sorriam, e ella sorria a todos os doentes. Ia passando como uma bençam, branda como o perfume de um lirio. No chão encerado dos largos corredores só se ouviam os passos da viscondessa batendo o metal dos tacões num tic-tac sonoro. Aquelle som regu- lar cahia-lhe no ouvido como um barulho profano. Envergonhava- se e temia attrahir a attençào dos doidos. Repellia o desejo de descal(^ar-se para deslisar como a irmã Seraphina pelo parquet, — Quervèr uma louca feliz? — Sim... respondeu a viscondessa. Impellindoa porta de um quarto, entraram. Ao pede uma janella, aberta para o azul do cspai^o, e ao lado de um leito todo feito de branco, uma velhinha risonha cantarolava num delgado fio de 5G ANCIÃ ETERNA VOZ, fazendo íricot. Os novellos bailavam-lhe no collo, sobre o zuarte limpo do vestido, e as mãos enrugadas e seccas moviam as longas agulhas, ligeiras, ligeiras. Sempre a cantar uma cantiga risonha, a doida cumprimentou a visita, com um movimento airoso de cabeça. A enfermeira murmurou indicando-a : — é sempre assim. Tornaram a sahir e desceram uma escada lar- ga de corremão envernizado. Em baixo atravessaram um páteo cimentado, onde numa ordem symetrica se alinhavam gran- des tinas verdes plantadas de azáleas. Os arbustos carregados pareciam botiquets, mais flores do que folhas., Uns vermelhos, escuros como sangue pi- sado, outros róseos como océo na aurora, e outros brancos como a neve casta. A viscondessa roçava por elles o vestido de seda que ia gemendo, no seu farfalhar, pela pressão nervosa com que ella o arregaçava. A irmã Seraphina colheu um galho das azáleas brancas, soprou delicadamente uma formiguinha que passeava numa das flores e entregou-o á vis- condesssa, murmurando : — As brancas são as mais bonitas, as mais ingénuas; não acha? A outra sorriu. Entraram num corredor que conduzia, direito e amplo, a uma alta porta de vidro azul. E OS CYSNES ? 57 Chegadas ahi pararam ; era a porta da sabida. Atravez do vidro grosso da porta via-se o vesti- bulo de ladrilho, aberto sobre o jardim. O sol estava forte, de um ouro intenso ; o azul acinzentado do vidro quebreva-o numa luz de cre- púsculo outoranal. Mármore da escada, areia do jardim, massiços de verdura, grupos de palmas, de roseiras ou de crotons variados, tinha tudo o mesmo tom enfumado, uniforme e brando. Ao centro do jardim, entre um relvado con- cavo, um pequeno lago tinha a côr e a placi- dez de um espelho; e á beira d'elle, sobre a grama bem aparada, uma cegonha parecia de aço, não só pela côr, como pela immobilidade da atti- tude. A viscondessa extendeu a mão á irmã Seraphina, mas esta não lhe prestou attenção : tinha o rosto collado ao vidro da porta. — Adeus... repetiu a viscondessa. A outra então voltou-se e, suspendendo o busto para chegar a bocca ao ouvido da viscondessa, disse com voz mal firme : — E oscysnes?.. — Que cysnes? ia perguntar a viscondessa. Mas conteve-se. A irmã Seraphina tinha o olliar branco de cólera, uma transformação súbita que- brara-lhe o encanto. Ella movia-se abrindo os cotovellos e esticando o pescoço. A viscondessa comprehendeu a verdade e tac- teou a porta, sem poder abril-a; quiz gritar — lev^ 58 AXCIA ETERNA medo; e a outra, entretanto, volteava, volteava, repetindo cada vez com mais força : — E os cynes ? e os cynes ? ! Minutos depois a viscondessa ouvia do director do hospital que a loucura d'aquella mulher provi- nha de ter perdido uma íilha afogada por causa de uns cysnes. A creança, debruçada no lago, qniz agarrar as aves 5 — as aves partiram e a peque- nina mergulhou. — Desde entáo a mãe finge-se de cysne, asseverou elle. — Comprehendo agora... Ella disse-me que tinha azas ! Com quem eu andei ! — Andou com uma inoffensiva que, mesmo quando grita, não faz mal a ninguém. Para mim, ella só tem uma curiosidade : a mania de se ter incarnado no inimigo. Foi um cysneque lhe mo- tivou a loucura, ella quer ser cysne... Emfim, j também acontece lá fora adorarmos ás vezes a própria causa do nosso mal... As suas azáleas, minha senhora ! E o medico apanhou as flores que a viscon- dessa deixara cahir ao entrar para o coupé, em- quanto os gritos continuavam lá dentro, repetidos e chorosos : — E os cysnes? e os cysnes ? ! SOB AS ESTRELLAS A OLAVO BILAC O padre JuIio voltava do Seminário, de corôa aberta e de batina, prompto para servir a Deus na sua villa mineira, alcandorada sobre precipícios de verdura e rochedos abruptos. Alto, branco e esguio, figura mystica de quem sonha e prescruta mysterios, elle derramava o olhar pelas penedias da encosta, taxonadas de flores de quaresma^ sem animo de perguntar pela sua amada de outrora, o seu único amor, aquella pobre láninha, tão ar- dente e apaixonada, que o enlaçava nos seus braços flexíveis como hastes de hera, queimando-o com o fulgor dos seus olhos negros de mineira inculta e imaginosa. Junctavam-se de noite nos campos, ella fugida do casebre da avó cabocla, elle da casa do tio pa- dre. Âmavam-se sob as estrellas. láninha sabia contos do sertão, historias de fei- ticeiras e lobishomens, que lhe contava risonha, achando graça nos seus terrores. Elle beijava-lhe 60 ANCIÃ ETERNA a garganta túmida, pedíndo-lhe qac se calasse. Tinham começado a mocidade junctos, ella era mais moça, mas muito mais precoce; elle ado- rava-a de joelhos, já um pouco voltado para o culto divino. De repente interrompeu-se o idyllio : o tio pa- dre exigiu que o sobrinho fosse para o Seminário. Das fugas nocturnas só eram sabedoras as estrei- tas. Júlio, timido, obedecendo á vontade do velho e impellido mesmo pelo seu espirito religioso, despediu-se da amante com resignação. Ella é que teve transportes de louca, que se collou a elle como lima cobra a um tronco, dizendo-lhe que o amava, que lhe dera a sua virgindade, a sua alma, que a vida era aquillo, a liberdade, o beijo, o amor! A tentação foi vencida, Júlio deixou-a sozinha, soluçando alto, na noite escura e silenciosa. Agora, olhando para aquellas penedias, para aquelles valles enormes, pensava que antes a lá- ninha tivesse morrido... e era essa a sua espe- rança ! Queria ser puro, queria ser santo. Voltara- se parao Céo com fé arrojada ; detestava o mundo e a carne. Vinha emundar a alma naquelle mesmo desterro que enchera de beijos e abraços pecca- mínosos. Nos seus extasis a figura de láninha atravessava-lhe por vezes a mente, como uma ten- tação diabólica e terrivel, qiostrando-lhe a alvura dos dentes, a negrura das madeixas revoltas, a rijeza dos seios morenos... Excommungava-a, amaldiçoava-a, enchia-se de cilicios, e cahla cho- SOB AS ESTRELLAS 01 rando, contricto, esmagado pelo remorso, numa allucinação dolorosa, sem achar meio de se puri- ficar d'aquelle passado que o assombrava. Antes a láninha houvesse morrido... Para saber isso, e com medo de o perguntar, Júlio foi ao ce- mitério, que era um canteiro, de pequeno. Ajoe- Ihou-se em frente de cada sepultura. De quem era esta? de quem era aquella? per- guntava. O coveiro sabia os nomes de todos os enterrados. Morria-se tão pouco, alli ! Uma era da tiaZefina, outra do Simeão, outra... Eram todos velhos, muito velhinhos já. A lá- ninha, então, vivia ainda ! Júlio corou, com vergonha d'aquelle pensa- mento cruel. O nome da mo(^a queimar-lhe-ia os lábios, se o dissesse, e, estava certo, toda a gente tomaria conta do seu segredo. Não, não pergun- taria por ella. E, abstracto, ajoelhou-se juncto de uma sepultura coberta de flores selvagens. — Esta é de uma creança, explicou o coveiro ; não deveria estar enterrada em sagrado, mas em fim... O padre ergueu o rosto longo e pallido, numa interrogação muda. — E' do filho de uma cabocla, láninha. A peste não o baptisou. De mais a mais ninguém sabe quem era o pae. O povo affirma que era o diabo. Dizem que a voz do povo é a voz de Deus... Quem sabe? Júlio baixou os olhos para a terra, cruzando 4 C2 ANCIÃ ETERNA as mãos com força sobre o coraçíio. O seu rosto, alvo e macilento, nada dizia, mas a batina estre- mecia ao arquejar do busto curvado. Sabia bera... do fundo d'aquella terra subia alguma coisa que o chamava, que o solicitava e lhe dizia : « és meu! » Aquellas flores selvagens não eram uma ins- cripção, um nome que lhe accusava a paterni- dade? O dia cahia gloriosamente. Franjas de oiro e mantos de purpura arrastavam-se pelo horizonte em nuvens grossas, embebidas de luz. Pelas pe- nedias escarpadas as bromelias erguiam os pen- nachos còr de fogo ; piteiras enormes eriçavam os despenhadeiros, e, lá em baixo, o rio passava numa curva, caudalosamente, reflectindo o céo rubro, vermelho elle próprio como uma onda de sangue. Toda a terra parecia victoriosa, erguendo as suas montanhas colossaes, a sua vegetação estu- penda, o seu cheiro de força, de amor e de ferti- lidade. Júlio teve Ímpetos de escavar a terra, arrancar de lá o corpo d*aquelle desconhecido, filho do seu amor e da sua carne, de chorar sobre os seus ossos despidos, de collar-lhe na caveirinha branca os seus lábios profanos, de lhe dizer que havia ternura no seu coração que debalde procurava tornar secco e estéril, que amava nelle a sua viri- lidade, a sua juventude, e aquella pobre láni- nha... SOB AS ESTRELLAS 63 Nisto levantou-se, frio e assustado. Como podia elle, religioso, padre, pensar na tentação da carne, naquella creatura que estilara peçonha e dòr por toda a sua vida, aquella cúmplice do demónio, que assaltava sem temor os ninhos das curujas, mostrando ao luar o negror das madeixas e a al- vura dos dentes no riso selvagem? Antes fosse ella a morta... Demais, não a enterrara elle para todo o sem- pre na lembrança? Nessa noite Júlio não durmiu. Voltava sem as leras folhas do Breviário. Lá fora o vento soprava em roncos e uivos e a lua sumia-se em nuvens fumacentas. Se erguia o olhar, via sorrir-lhe o doce Jesus, do regaço materno, na parede em frente. Uma creança, uma flor de carne e de sonho; <}ue divina coisa ! E elle tivera um filho, e não o vira nunca, e não o amara, e não o repousara sobre o seu coração frágil, morada do peccado e da vergonha, e não lhe beijara os pés assetinados, nem a boquinha já roxa pela morte! Na solidão dó seu quarto rezava pelo filho, aquella alma pagã creada pelo seu beijo, porque, sabia-o bem, a láninha não tivera outro amante; era elle o seu dono, o senhor absoluto e muito amado, o deus supremo d'aquella selvagem, filha da terra e amiga da terra, para quem a natureza Gi ANCIÃ ETERNA era a única bíblia a que abria a sua alma sim- ples. E elle voltava querendo achal-a morta ! Encostado á mesa, juncto ao leito vasio, o pa- dre compunha em mente as feições do filho, dava- Ihe vulto, sentia nelle o melhor da sua alma, o mais elevado dos seus ideaes... Súbito y um toque de sino vibrou rebelde e agudo na noite silenciosa. O padre ergueu-se, lí- vido. Que seria aquillo? Eram duas horas, o vento abrandara. Houve um rumor de azas algodoadas fugindo espavoridas do campanário. A villa dor- mia tranquillamente. Mas veio outra badalada do sino tangida com nervo e raiva, atravessar o es- paço negro como um grito de dòr. Áquelle toque succederam outros e outros, des- ordenados, como se o pobre sino da aldeia tivesse enlouquecido ou abrigasse no seu velho bojo to- das as bruxas e duendes dos campos. O padre, assustado, amparou- s; ao crucifixo, ergueu-o e caminhou resoluto para a porta, que abriu de par em par. O campanário ficava á esquei*da, dominando o valle enorme, todo cheio de sombra. Júlio seguiu para alli, com a cruz erguida e os lábios murmu- rando preces. Pareceu-lhe distinguir um vulto branco agitando-se na treva como um phantasma. Elevou bem alto o Ghristo, e a poucos passos a sua voz forte retumbou num esconjuro formidável que abalou a terra. SOB AS ESTRELLAS 65 O sino emmudeceu ; mas o vulto branco lá es- tava, desenhando uma curva pallida na escuridade. O padre chegou-se para o campanário, audaciosa- mente, sentindo-se bem apoiado no crucifixo e na sua fé religiosa. A poucos passos estacou : a lua rompera o crepe das nuvens e illuminava láninha semi nua, com a cabeça deitada para traz, o cabello pendente, os olhos perdidos na abobada estreitada. Ella alli estava, segura á corda do sino, aquelle velho sino de aldeia, tão meigo, tão acostumado a só tallar de paz ás montanhas solitárias. láninha quedou-se immovel, sentindo Júlio perto, mas com medo de olhar-lhe para a batina. Depois fallou, num queixume, murmurando as palavras. Disse que tivera d'elle um filho, lindo como os amores, que lá estava no cemitério muito socegadinho. Júlio estremeceu ; os braços extenderam-se-lhe para prendel-a, os lábios moveram-se-lhe para beijal-a; mas conteve-se, hirto, de cruz alçada, livrando-se da tentação... láninha chorou : aquelle tempo antigo fora tão bom ! O campo ahi estava, aberto a todos os se- res, fértil, com os hymnos das aves e o perfume das plantas. A vida rebentava atoa em cada canto. Em troncos velhos viçavam lianas e parasitas; em corolas de flores aninhavam-se milhares de insectos ; e os ninhos estavam povoados, e as to- cas rescendiam a paz amorosa, e toda a terra des- 4. 66 ANCIÃ ETERNA abrochava á espera de que elies fossem também, como noutros tempos, amar-sesob as estrellas. Peccar? Não era peccado! Que seria o mundo, sem a perpetuação do amor ! láninha arrancava aquillo da sua imaginação caudalosa, lamentando-se por não ter nascido sob outra forma, por não ler a vida libérrima da ave, do insecto ou da flor ! E estava formosa, formosa como nunca. Has o padre sentia o peso do cruci- fixo nas mãos geladas. Certamente que no fundo da sua alma alguma lucta havia que lhe cerrava os beiços e lhe illuminava a fronte larga e livida. Mas a palavra de amor não lhe sabia da gar- ganta. Voltou para dentro, de cruz erguida, com as faces banhadas de lagrimas. Consumou o sacrifí- cio : entregava-se a Deus. Lá fora o sino voltou a badalar na noite negra, desordenada, furiosamente, como se o próprio diabo o tangesse! Depois tudo emmudeceu. As aves voltaram para o campanário; uma barra de luz indecisa abriu-se frouxamente no horizonte, e, só, no meio da noite, o cadáver da láninha, enforcado na corda do sino, olhava de face para o valle enormíssimo todo cheio de aromas e de treva. A PRIMEIRA BEBEDEIRA — Não saias hoje, meu filho ! a noite está tão feia ! Que necessidade tens tu de te expôr ao tempo ? — Descance, minha mãe, que eu voltarei ■cedo... — Mas repara que é hoje o dia do meu anni- versario, que ha de vir alguém vêr-rae, e a tua 4iusencia será censurada... — Descance, minha mãe, que eu voltarei cedo. . , — A noite está escura e o caminho é tão màu... — Descance minha mãe... — Que voltarás cedo, não é assim ? Pois faze o que quizeres, na certeza de que me dás um des- gosto... Adeus! — Até já, mamãe. E o moço sahiu. Cahia uma chuva miudinha, peneirada, leve, e no céo tenebroso não luzia uma «strella. De longe em longe a luz de um lampeão illuminava um bocado da rua barrenta , ladeada de matto, sem calçada. Sentia-se o respingar deli- cado das gottinhas de chuva nas folhasse ao longe 68 ANXÍA ETERNA nuns charcos , umas rãs coaxavam. Ao cabo de um quarto de hora o moço batia com a bengala nas grades de um jardim. Ouviu abrir-se e fechar-se rapidamente uma porta ; depois, uns passos ligeiros quebrando a areia do jardim e uma voz doce dizer-lhe : — Não posso demorar-me agora... meu tio está em casa ! — Que importa? e eu não deixei minha mãe, hoje, dia de seus annos? — Ah! mas isso é diffferente... os homens fazem tudo que lhes apraz!... — Mas eu tenho muito que lhe dizer, Alber- tina! — Volte logo, ás dez horas... fallar-lhe-ei da janella... — Escute... — Não posso... estão-me chamando, adeus ! E o vulto embuçado da bella Albertina tornou a desapparecer entre os arbustos do jardim. De- pois ouviu-se de novo abrir e fechar rapidamente uma porta, e ficou tudo silencioso. Contrariado, o moço lembrou-se da promessa que fizera á mãe; mas, como voltar, se a Alber- tina lhe dizia que a fosse vér ás dez horas? Deci- didamente era preferível fazer a vontade á ultima. A mãe que se resignasse. . . Para não esperar alli, na rua, tolamente, lem- brou-se de ir passar uma hora no botequim do bairro, onde tinha a certeza de encontrar amigos. A PRIMEIRA BEBEDEIRA 69 Assim foi. Junto a uma mezinha de pedra con- versavam alto, rindo, três collegas seus, rapazes ainda muito novos, imberbes como elle, affectando um ar de estróinas, de bohemios românticos, con- victos de gosarem assim a sua mocidade, apenas desabrochada e já um tanto murcha pelas extra- vagâncias. Logo que o viram entrar, fizeram os outros grande algazarra ; manifestaram espanto, atirando ao ar phrases bombásticas salpicadas de adjectivos flammejantes e das mais conhecidas locuções la- tinas. Abriram-lhe logar e encheram-lhe o cálice de cognac. Estabelecida a palestra, o da direita offereceu-lhe charutos, o da esquerda apresentou- lhe um phosphoro acceso, e o que estava em frente renovou-lhe o cognac do cálice. E este cri- ticavo-o por achal-o acanhado, esquerdo; aquelle, porque mostrava pouca pratica das rapaziadas alegres; aquelle outro, porque lhe percebia na phraseologia uma chateza das palestras familiares, inspiradas pelos conselhos da mamãe nos serões caseiros. — Um pouco de atrevimento, um pouco ao me- nos ! meu caro ! dizia um ; e logo outro : — Audaces fortuna juvat,.. — Isto de homens maricas só servem para uma coisa : envergonhar a espécie ! — Apoiado... — Apoiado! Aquellas advertências humilhavam o rapaz. 70 ANCIÃ ETERNA Realmente elle começava a achar-se ridículo, parvo c infeliz. Não encontrava justificação para a sua timidez; daria tudo para convencer os collegas de que era folgazão e gosava a vida ; de que tinha proezas, e não obedecia á familia tanto quanto suppunham. Chegou mesmo a fallar na indepen- dência do seu caracter, na sua maneira altiva de tratar os superiores e nos recursos monetários que não lhe faltavam nunca... Ia bebendo. — Bravo ! á tua saúde ! — Bravo! — Bravo I Os copos esvasiavam-se, ós olhos brilhavam e as palavras escorriam fluentes, entre casquinadas de risos e tilintar de vidros. Entraram depressa em assumptos de amor : Um confessou fazer a corte a uma velha que lhe dava pi*esentes, e mostrou, vaidoso e risonho, o alfinete da gravata cravejado de pedra finas. — Quando a desenganares avisa-me, dizia um outro; ando muito falto de jóias. Successivamente foram-se desenrolando, entre o fumo e o cheiro forte do álcool , as historias amorosas de todos elles, até que chegou a vez da Albertina. O nome da pobre moça 'foi innumeras vezes repetido, e, como alguém duvidasse da veracidade do conto, o rapaz tirou do bolso uma carta, e, abrindo-a com um gesto decidido, bateu com ella na mesa, sobre o cognac entornado. A PRIMEIRA BEBEDEIRA 71 — Dá cá! deixa-me vèr quantos erros traz... pediu-lhe um dos companheiros. Elle entregou o papel e, recostando-se na ca- deira, ouviu risonho e triumphante toda a carta da moça, declamada num tom emphatico, embora por vezes muito arrastado. Choviam commentarios ; rebentavam a cada pe- ríodo gracejos brutaes; e elle, que até antão res- guardara honestamente, com toda a delicadeza e cuidado, o seu amor, expunha-o agora, sem vexame, aos companheiros indiscretos, gabando- se muito! — E que tal, é rica? perguntava um. — E é formosa? inquiria outro. Elle ia respondendo affirmativamente a todos, rindo-se, com o olhar quebrado, os braços sobre a mesa, a voz alterada e o copo entre os dedos. De vez em quando parecia comprehender a reali- dade; queria então reagir, luctar, esconder o seu amor num melindroso recato ; mas a cabeça pendia-ihe para o peito, as idéas bailavam- lhe no espirito como folhinhas num rede- moinho de vento, e tudo quanto era digno, justo, e que habitualmente guardava concentradamente no coração, consentia quegyrasse agara, de um modo grosseiro, nesse pequeno circulo de amigos insensatos ! Varriam-se-lhe depressa todos os escrú- pulos ! o cognac ia arrastando as subtilezas da sua alma, afogando os seus deveres, ennegrecendo a sua consciência. Deu-lhe para fallar. Contou a sua vida 72 ANCIÃ ETERNA íntima, segredos de família que não transpare- ciam cá fora : o pae fugira por dividas ; um tio roubara em casa de um amigo... Arremedou de- pois a voz da Albertina e a maneira da mãe ra- lhar com a criada . Os outros já lhe não prestavam attenção , iam bebendo, silenciosamente, até que o dono do bo- tequim os poz na rua. A chuva cessara ; corria uma viração forte, em- balsamada do aroma das chácaras. Os amigos se- guiram abraçados, cantando alto, para a esquerda ; elle subiu a rua, não errando, milagrosamente, o caminho de casa. Mal seguro nas pernas, do- brando frequentemente os joelhos, cambaleante, ora na calçada, ora no meio da rua, approxímou- se da morada de Albertina, que o, esperava a um canto da varanda. Vendo-o naquelle estado, ella, sem dizer nada, escondeu-se e fechou horrorisada a janella. Elle poz-se então a gritar de baixo que não estava bêbedo, que não estava! calumniava-o quem affírmasse isso ! E como a Albertina não se resolvesse a apparecer, elle desatou a chorar alto, muito alto, num berreiro desesperador. Passou assim algum tempo, até que, já can- çado, continuou o seu caminho* A calçada aca- bara-se; o solo agora era desegual, barrento, coberto de lama e de poças d*agua. Por um pro- digío extranho conseguiu conservar o equilibrio ; ia de bordo em bordo, muito agoniado, com grandes tonturas e dores de cabeça. Ao pé de A PRIMEIRA BEBEDEIRA 73 casa havia uma ladeirinha escorregadia... ahi não se pôde suster, os joellios dobraram-se-llie, vie- ram-lhe ao mesmo tempo os vómitos, e elle cahiu. Palpitavam-lhe com força as artérias das fontes, martellando-lhe pancadas dolorosas ; não podia mover o corpo, muito pesado ; e começava de ter a percepção da sua vergonha. Um cão lambeu- Ihe e bafejou-lhe a cara; a viração fria da noite pareceu-Ihe depois cortar com uma chicotada a face, molhada da baba do animal. Estava assim, coberto de immundicie, quando a mãe surgiu, com um chalé pela cabeça, á porta da habitação, a observar se o filho viria perto ou não; dando com elle, assim cabido, julgou-o doente ou ferido, e ajoelhou-se depressa a apal- pal-o. Ghamou-o devagar, cariciosamente ; não ou- vindo resposta, abaixou-se mais, procurando, tré- mula, escutar-Ihe a respiração; mas, ao chegar a cabeça á bocca do filho, recuou espavorida, sen- tindo o cheiro do álcool. Elle fitava nella os olhos, pasmadamente. Não passava ninguém; fazia frio, estava escuro, e latiam ao longe os cães ; no emtanto a pobre mulher esforçava-se por erguer nos seus braços débeis o corpo pesado do filho, e o seu maior de- sejo era poder abrigal-o no seio, escondendo-o de todas as pessoas e de todas as coisas ! Conseguiu leval-o sozinha, atravéz do corredor 74 ANCIA ETERNA escuro, para o seu quarto ; deitou-o, deu-lhe re- médios, e emquanto elle dormia, resonando alto, ella, numa agonia muda, vigiava á porta, para que alguém não fosse surprendel-o assim... A CASA DOS MORTOS A FRANCISCA JÚLIA DA SILVA Que frio e que negrume ! E eu ia andando no meio da treva, corajosa e firme, em busca d'aquella que me deu a vida, que me criou nos seus seios, que me enchia as faces de beijos e me vestia a alma de alegrias. Eu estava agora faminta, mal vestida, mal con- solada, cheia de maguas, saudosa do seu afago quente e doce, da sua palavra cheirosa como o mel da abelha em tronco de especiaria. E fui andando na treva, seguindo uns passos que eu ouvia, não sei de quem, não sei para onde. Nem uma estrellinha orientadora ; tudo era mu- dez; só aquelles passos deante de mim : tan, tan, tan, tan, como martelladas atravez de uma parede grossa ! E fui, sem medo, até que os passos pararam e uma porta se abriu sem rumor, larga e macia. Veio uma rajada ; encostei-me ao humbral e divi- sei então, a uma luz frouxissima, uns vultos mal definidos, quasi apagados. 76 ANCíA ETEftNA Perto de mim um homem, embuçado como um esquimó, tirou da cabeça um fardo e pousou-o no chão ; depois, voltando-se, disse-me com uma voz soluçada como o vento na ramaria de um sal- gueiro : — Porque vieste atrás de mim? Esta é a casa dos mortos. Vae-te embora ! A estrada negra é prohibida aos vivos ; és o primeiro que a per- corre toda sem ter morrido... Sombras esparsas iam tomando formas huma- nas e vinham curiosas, lentas, resvalando, de- bruçarem-se sobre o meu corpo, em attitude de espanto. Eu resistia ao pavor e sôfrega perscru" tava tudo, em busca d'aquella que me deu a vidu, que me enchia as faces de beijos, que me emba- lava com as suas palavras mais cheirosas que o mel das abelhas em tronco de especiaria. — Quem procuras? perguntou o mesmo ho- mem, cujos traços eu não percebia sob a projec- ção do capuz. — Minha mãe. O som da minha voz fez fugir em revoada todas aquellas figuras de névoa, como a badalada de um sino em torre coberta de passarinhos. Eu mesma tremi, extranhando a vibração das minhas palavras, tal a clareza e a vida da minha voz cchoando entre os fracos murmúrios das outras, de um ténue sopro de brisa. Então lá do fundo, do meio de um amontoado de novellos alvadios que se dissipavam aqui para A CASAS DOS MORTOS 77 se ajuntarem acolá, a minha mãe veio até mim, sorrindo, com o seu vestido caseiro, a sua bella carne rosada, gorda e fresca como nos tempos em que eu repousava no seu largo seio a minha ca- beça sonhadora e febril, e ella me alisava os cabei- los com as suas mãos formosissimas. Radiante, atirei-me para beijal-a; ella, porém, sempre táo prompta em receber os meus carinhos, paralysou-me com um gesto : — Não me toques ! não me beijes ! Todo o meu corpo se desfaria ao mais leve contacto... Terias horror da minha carne e desmaiarias se os meus lábios se unissem aos teus. Para que vieste procurar-me? Foge, meu amor, o teu logar é lá, na vida, na febre, na luz, no soffrimento. Vae sofTrer. Saudades? tinhas saudades? Pobrezinha! Esquece ; não ha nada que valha o esquecimento. Eu nunca te appareceria, se não viesses procurar- me. Fizeste mal ao meu repouso, porque, vendo- te, eu não te posso apertar ao meu seio ! E as tuas irmãs! EElle?! Eu chorava ; e não perdia um só dos seus ges- tos. Lémbro-me de que ella quiz dar-me uma fnicta, e que sorriu depois com amargura, vendo desfazer-se entre os seus dedos li vidos a fructa que me extendia. — Até os mortos têm illusues... eu esquecia- me... disse ella com a sua voz tão outra, apenas audivel, como um murmúrio de vento muito ao longe... 78 ANXIA ETERNA Então eu vi, eu vi que todas aquellas sombras íluctuantes cercavam o fardo que o homem de capuz pousara no chão; eram dois caixões com defunctos; em um ia uma virgem, no outro um homem. Ella era branca e fina, com umas ma- deixas negras sobre a túnica pallida e uma haste de nardos nas mãos postas em cruz. Elle era egualmente pallido, e moço, e bello, com a sua linda cabeça loira pousada em violetas. A Morte, em pé, muito alta e muito esguia, deante dos dois caixões , lançava-lhes uma ben- çam vagarosa , larga, com dizeres que eu não entendia. Minha mãe explícou-me : — Só o amor perdura além da morte. Aquillo é a celebração de um noivado. Os dois corpos fica- ram là embaixo, intactos, rígidos, mas aqui as duas almas estarão sempre unidas ; e se voltarem á terra voltarão juntas e para o mesmo laço. Serão eternamente presas uma á outra ; almas felizes, raras ! Vês ? Quem não ariíou na vida não tem nem a doçura da saudade para amenisar-lhe a tristeza d*este exilio. Repara para as virgens sem noivos ; que ar de lamento que ellas têm ! Essas nunca vol- tarão á terra, porque da vida não trouxeram lem- brança. Só quem amou traz para o mysterio da morte um aroma de sonho. Tudo mais é poeira que o vento leva, e espalha, e não se torna a en- contrar... Vae-te embora ! Os olhos de minha mãe tinham um brilho de A CASA DOS MORTOS 79 lagrimas, e eu extendi-Ihe os braços anciosos, e logo o seu corpo se tornou immaterial, diaphano, como se de névoa fosse. Então o homem do capuz, cujas feições não vi, pegou-me pela mão e trouxe- me para fora, para a estrada, onde eu caminhei entre duas longas filas de cyprestes negros e de anémonas roxas. Caminhei, caminhei, sem sentir o solo sob os passos cansados ; e quando abri os olhos doeste extranho sonho tinha o rosto co- berto de lagrimas e as mãos em cruz sobre o coração. AS HISTORIAS DO CONSELHEIRO — Pois minha cara senhora, foi assim que se acabou a historia.... — Tem graça ! e a rapariga não tornou a ap- parecer? — Nunca mais a vi ; só sei que o chim casou. .. — Com a tal velha rica?! — Exactamente! — Mas é delicioso! — Teve pilhéria, teve... Realmente, eu tenho presenciado muita coisa! — Então! sr. conselheiro, emquanto não nos servem o chá, conte-nos um outro caso; este foi de um humor irresistível. Ora o chim ! O conselheiro correu o olhar pela assembléa : todos riam. O general limpava uma lagrima, suspi- rando de allívio, ainda com os lábios distendidos e a mão esquerda comprimindo o ventre. O sobri- nho levantara-se e, encostado á janella, assustava as begónias do jardim com o som estridulo das suas gargalhadas frescas, sonoras, rescendentes de mocidade; a dona da casa sorria agitando a o. 82 ANCIÃ ETERNA ventarola de seda, e a avó abanava com incredu- lidade a cabeça branca, perguntando a uma neta, que estava ao seu lado, a conclusão do facto, que não ouvira bem... a neta a cada pergunta renovava o riso, curvando-se muito a esconder o rosto na toalha de linho em que bordava as suas iniciaes. — Vamos, sr. conselheiro, repetiam-lhe, outra historia, sim? Mas o conselheiro, que tinha uma memoria de anjo e que cultivava o género das narrações, dei- xou prudentemente voltarem todos á sua costu- mada placidez; e, depois de pensar um pouco, decla- rou ter escolhido assumpto, egualmente verídico^ mas de género differente. Chegaram-se todos. Elle começou : Exercia eu o cargo de juiz de direito na pequena comarca de Santa Barbara, quando me foi apre- sentado o dr. Lemos, antigo advogado no logar, homem pacato, edoso, cheio de preconceitos reli- giosos e sociaes, muito bôa pessoa mas muito ca- cete também. £u morava sozinho, numa grande casa antiga, de corredores abobadados e de salões sem fim. O homem entendeu que me devia fazer companhia, indo povoar a minha soledade doce e tranquilla, com os seus receios e phantasmagorias ! Poucos minutos depois de eu ter chegado das sessões do tribunal, era certo, ouvia os passos do meu impor- tuno amigo echoando como martelladas surdas e compassadas pela escada acima. Entrava para o AS HISTORIAS DO CONSELHEIRO 83 meu escriptorio, sempre solemne, e, trocadas meia dúzia de palavras, debruçava-se sobre a minha mesa de trabalho, folheava, lia, meditava autos, atrapalhava-me com objecções os processos, decla- mava contra as acusações dos libellos, para elle sempre pallidos edefficientes,e alli ficava horas in- teiras, respirando o veneno da maldita cicuta nas- cida no mais pestifero dos pântanos — o crime ! como elle costumava dizer na sua implacável rhe- torica ! Eu ás vezes tinha vontade de o mandar de pre- sente ao diabo, e demonstrava-lhe mesmo certo máu modo, que elle, na simplicidade natural dos bons, nàocomprehendia.Mas admirem-se! aquelle homem, que me entediava, estorvava, privando- me da minha liberdade, da minha satisfação, da minha paz concentrada e feliz, aquelle homen era- me por fim indispensável, real e positivamente imprescindivel ! É verdade! Estimei-o ; estimei-o é pouco ; adorei-o ! Se elle tardava, eu ia á janella, olhando impaciente para a longa rua solitária da pobre cidade de província. As gallinhas cacareja- vam, depenicando nas hervinhas nascidas nas gre- tas das calçadas, e, num quintalzinho fronteiro, uma cabocla sadia e formosa cantava alto, exten- dendo roupa no coradouro. Era sempre o que eu via áquella hora, até que despontasse na terceira esquina do alto o vulto do dr. Lemos, magro, meto curvado, com uma sobrecasaca comprida, calças escuras e o chapéu de sol aberto, inclinado para o 84 ANCIÃ ETERNA lado do sol. Então eu recommendava á criada que nos preparasse o café, e ia esperal-o no escrip- lorio. Lemos contou-me a sua vida ; coisa vulgar : sem- pre com aspirações a fortuna, hoje uma esperança, amanhã um desengano, e o tempo a passar e a ve- lhice a tomar posse d*elle, com os seus achaques e desillusões ! Gasára-se: a mulher era um anjo a quem não tinha podido nunca dar socego de espi- rito; mas a infeliz morreu cedo, deixando um filho pequeno. Ora, esse filho era então o grande sol, a ultima e única esperança que restava ao velho ! O po- bre homem levava-me horas e horas a tecer elogios ao seu portentoso Isidoro, uma verdadeira maravi- lha de talento e de virtudes. A honra era o grande pedestal de ouro em que nuns enthusiasmos arre- batados collocava esse deus, herança de uma mu- lher amada. Contava coisas do pequeno, exaltando- Ihe o caracter; e orgulhava-se d'elle, do seu juizo, da sua probidade, do seu critério; não fallava se- não na grande rectidão de espirito, de que, desde creança, dera provas ; no seu carinho, na bondade natural do seu coração, em mil coisas ternas, enal- tecedoras e naturaes em um pae. Eu ouvia-o, fe- licitava-o, e lia de vez em quando uma ou outra carta que o rapaz enviava da corte, onde o pa- drinho, influencia politica, o tinha empregado, como caixa de um banco. Aquelle era o único ponto que o prendia ao mundo. Sem o Isidoro a terra pareceria ao dr. Le- AS HISTORIAS DO CONSELHEIRO S'' mos como que um grande arneiro em que nã- houvesse um único recanto nemoroso; tudo este ril, frio, chato, insalubre! Era aqueile filho exemplar, que o céo lhe con- cedera, quem dava côr ás ílôres, brilho ás estrellas. aroma ás plantas, doçura ao ar, tranquillidade ao- lagos, belleza ás aves e harmonia á musica! Eu, pobre solteirão, bem coUocado, desconhecend^^/ grande parte da vida, a lucta da existência a que elle, desde os doze annos de edade, orphão de mãe e pae, se lançara; eu tinha muitas vezes invejfr d'aquelle homem, alquebrado de trabalhos e de in- justiças, mas sempre honesto e sempre radiante do orgulho que lhe dava o filho ! Ah ! quantas ve zes eu não suspirava, imaginando a ventura de ter também um Isidoro, forte, espirituoso e, so- bretudo, honrado como o do meu amigo ! Mas isto são coisas que não vêm ao caso; continuemos. Vi- víamos assim seguramente havia uns dois annos, quando recebi uma carta do Rio, pedindo-me que, por ser eu amigo dedicado e reconhecido do dr. Le- mos, lhe participasse, como entendesse melhor, que o filho... — Morrera? perguntou uma das senhoras, in- teressada pelo banal enredo. — Não... peior. — Ora essa ; peior do que a morte ! Então que era? — A deshonra, minha querida senhora! E o conselheiro, passando o lenço de seda pela 80 ANCIÃ ETERNA calva, fez uma pausa, premeditada para maior impressão; depois proseguiu : — Communicavam-me ter o rapaz subtrahido ao banco de que era caixa uma grossa quantia ; a bagatella de trezentos contos e ter fugido para a America do Norte ! Imaginem o pasmo em que eu cahi ! Comtudo, era preciso reagir, procurar o ve- lho antes que elle me viesse á casa, e dizer-lhe tudo, geitosamente ; se não, poderia antecipar-me al- guém de menos caridade, ou mais irreflexão. Co- mo elle costumava ir lèr no meu escriptorio os jornaes da corte, escondi-os na gaveta da secre- tária, bem fechados : podia dar-se o caso de um desencontro ; nada mais fácil do que ir eu tomando a esquerda, para a sua casa, e elle vir da direita, para a minha. Sahi ; fui bater-lhe á porta ; elle não estava. Regosijei-me com isso. Voltei mais soce- gado até meio caminho ; mas depois irritei-me ! poderia estar tudo concluído, e afinal havia ainda de esperar uma occasião propicia para desfechar tão pavorosa revelação! Quando entrei no meu escriptorio já lá o encontrei sentado, a lér um grosso volume de Direito, com os óculos encaval- gadoâ no nariz, cruzadas as pernas longas e ma- gras, o lenço de rapé sobre o joelho, e os nastros das ceroulas pendentes, a balançarem-se ao con- tinuo movimento da perna. — Então como vae isso? perguntei-lhe na mi- nha prosa de uso ordinário. — Menos mal... AS HISTORIAS DO CONSELHEIRO 87 — Bom... — Estou aqui a lèr os seus livros, já que não encontrei os jornaes ; dar-se-á caso que não vies- sem hoje? — Sim... é verdade; não vieram hoje! — Fazem falta; que diabo, aquillo afinal é o meu vicio ! . . . Tive um rizinho amarello e puz-me a ler tam- bém um in-folio, a que não prestava attenção, es- tudando um meio de contar o caso ao velho. Mas não tive occasião : pela primeira vez em vinte e sete mezes, o dr. Lemos não me fallou no seu ido- latrado Isidoro ! E eu á espreita d'esse momento para aproveitar- ensejo de encaixar o ensaiado discurso ! Convi- dei nesse dia o Lemos para jantar; elle aceitou e eu calculei : « Está direito ; á sobremesa conto-lhe tudo! » Jantei mal, elle não; comia com vontade, accumulando no prato carne, hervas e arroz, mas- tigando a côdea do pão, bebendo a grandes goles o meu estimado Collares. Eu, que o sabia sóbrio e que muitas vezes tinha presenciado o seu re- pasto frugal e mesquinho, admirava-me; e pelas alturas da sobremesa, vendo-o animado, com bõa cõr, coisa extraordinária nelle, habitualmente es- verdeado, julguei mais acertado novo adiamento : a occasião não era azada, com certeza! Lemos cahiria morto, fulminado por uma congestão, en- tre as cadeiras e a mesa, arrastando na queda os- despojos dos frangos e as fructas em calda de as- 88 AXCIA ETERNA sucar ! Parecia-me vel-o, rubro, com os olhos des- medidamente abertos e a mão crispada, tentando num esforço angustiado arrancar ao pescoço a gravata. — Em que diabo está o senhor a pensar, per- guntou-me elle, que parece tào preoccupado ! De- sembuche, homem! — Não penso em nada... — Um... emfim, não tenho direitos que justi- fiquem qualquer insistência ; se não havia de con- fessai -o ! — O dr. é que me parece satisfeito, hoje. — Assim é ! E chegando a cadeira para perto da minha, abriu a carteira e mostrou-me duas notas de quinhentos mil réis remettidas pelo filho, o seu Isidoro, como lembrança de amizade. Veja o amigo, continuava elle, que excellente rapaz ! quantas economias, quantas horas de trabalho isto não representa ! meu pobre filho ! Nada fiz por elle, não cursou academias, passou muitas ve- zes vexames, escondendo as botas rotas e tapando com um lenço o pescoço sem coUarinho, tudo isso por eu não ter nunca um emprego, uma colloca- ção, uma causa! e agora ahi está... dizia, com os olhos rasos d*agua, apontando as notas, ^ como elle me recompensa de tantas vergonhas por que passou ! E levantando a carteira beijou com ternu- ra, grata, demoradamente as duas notas de qui- nhentos mil réis remettidas pelo filho. Não pude reprimir um movimento de indigna- \ AS HISTORIAS DO CONSELHEIRO 89 ção; mas o bom homem, todo embebido na sua ventura, não o percebeu. Offereci-lhe mais vinho e fallei de outra coisa. Elle ex tendeu o copo, sem parecer escutar-mc ; depois, com um sorriso nos lábios e os oliios ainda húmidos, voltou-se para mim e disse: — Vá lá! quero que o meu amigo me acom- panhe num brinde! A' saúde do melhor dos filhos, o meu Isidoro ! Estremeci e hesitei ; mas venci depressa a minha grande repugnância e, elevando o cálice, repeti machinalmente : « A' saúde do seu filho Isido- ro!... » Os nossos olhares encontraram-se; o d'elle cheio de ternura, trasbordante de gloria, num grande extravasamento de alegria! o meu reflectindo a mais penosa das impressões ! Tocámos os copos e, silenciosamente, exgotámos o velho Porto. Pois, meus amigos, não só occultei do desgra- çado pae, o que succedeFa ao filho, como ainda fui bater de porta em porta, recommendando silencio aos seus poucos amigos ! Respeitavam-me muito no logar, e até á minha partida ninguém ousou dizer-lhe coisa alguma a tal respeito. Mas, desde esse dia, a minha vida tornou-se um martyrio em Santa Barbara. Todos os dias decidia fallar ao dr. Lemos da si- tuação do filho, e todos os dias transferia a exe- cução do plano ! Ao sentil-o na escada escondia á pressa os jornaes, cheios do nome de Isidoro I 9í) AXCIA ETERNA Ouvia-lhe os elogios do filho, como o mais honrado, o mais honestamente bom dos homens, sem de- monstrar o desprezo, o ódio, que esse rapaz dis- tante e desconhecido me inspirava ! Uma tarde resolvi definitivamente contar-lhe tudo, e convidei-o para um passeio. íamos a pé, devagar, palestrando pachorrentamente; segui- mos pelas ruas menos frequentadas, até um cam- po, onde Lemos parou, e extendendo o braço longo e secco apontou-me um terreno distante, á esquerda, mais sombreado de ai*vores, ao pé de uma casca- tinha tremeluzente, entre verduras de relvas e manchas claras de pedras: — Acolá, disse elle, é que eu desejo e ainda espero ver um chaletzinho feito pelo meu Isidoro, onde eu viva ao pé d'elle, de uma nora sensata e de uns netinhos alegres... Será então, se eu conseguir isso, a minha primeira épocha de felicidade neste mundo! Não respondi, mas, francamente, tive vontade de chorar; a única ambição do desventurado era irrealisavel como tantas outras ! Não ! eu não lhe diria nunca o que tinha feito o seu honesto Isidoro ! Voltando para casa requeri ao ministro da jus- tiça t licença para tratar da minha saúde onde me conviesse » . Felizmente fui attendido; o despacho não se fez esperar muito. Em uma manhã chuvosa parti de Santa Barbara. Lemos foi dizer-me adeus á esta- ção ; parece-me que o estou a ver, fugindo da lama, a saltar de pedra em pedra, com o chapéu de chuva AS HISTORIAS DO CONSELHEIRO 91 aberto, as calças arregaçadas, o sobretudo abotoado e um lenço de seda enrolado no pescoço. Eu já estava no vagon, elle encostou-se ao- comboio e segurou-me as mãos com amizade, pe- di ndo-me que, de passagem pelo Rio, visitasse o ?eu filho. Prometti-lhe isso e desci ; abraçámo-nos ; vi-lhe, atravez dos óculos, as lagrimas tremerem-lhe pre- sas ás pestanas ralas e curtas... Meu pobre ami- go... Ao primeiro silvo e á primeira oscillação do trem, entrei á pressa ; um empregado fechou com estrondo a porta; Lemos, recuando muito pallido, fixava-me com ternura; mais um segundo e o comboio partiu ; debrucei-me na janella ; lá ficava sozinho o Dr. Lemos, agitando melancholicamente o seu lenço branco. Escrevi-lhe do Rio, mas não obtive resposta. Soube mais tarde, por uma carta do promotor publico, que o velho estava louco; disseram-lhe tudo no próprio dia da minha partida; aquellabôa gente arrebentaria de impaciência se o não fizesse! Ora ahi está, meus senhores, como se acabou esta segunda historia... — Decididamente, sr. conselheiro, achei muito melhor a primeira... — Deveras, minha senhora? — Sou da mesma opinião, confirmou o general. — E eu, e eu, disseram outras vozes. 92 AXCIA ETERNA — Pois, meus amigos, entre todos os factos da minha vida, foi este o que maior impressão me deixou ! Sempre que me lembro do infeliz pae... — Bem, interrompeu a dona da casa, disfar- çando um bocejo : vamos agora ao chá ? A CAOLHA A EVA CAXEL Â caolha era uma mulher magra, alta, maci- lenta, peito fundo, busto arqueado, braços com- pridos, delgados, largos nos cotovellos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo rheumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabello crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o loiro grisalho, d'esses cabellos cujo contacto parece dever ser áspero e espinhento; bocca descabida, numa ex- pressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e ca- riados. O seu aspecto infundia terror ás creanças e repulsão aos adultos ; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível : haviam-lhe extrahido o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando comtudo, junctoaolacrymal, uma fistula continuamente porejante. 94 ANCIÃ ETERNA Era essa pinta amarella sobre o fundo dene- grido da olheira, era essa distillação incessante de puz que a tornava repulsiva aos olhos de toda a gente. Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa officina de alfaiate; ella la- vava roupa para os hospitaes e dava conta de todo o serviço da casa, inclusive cosinha. O filho, emquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ella, ás vezes até no mesmo prato; á proporção que ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na physionomia a repugnân- cia por essa comida ; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou á mãe que, por conve- niência do negocio, passava a comer fora... Ella fingiu não perceber a verdade, e resi- gnou-se. D'aquelle filho vinha-lhe todo. o bem e todo o mal. Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe apagasse com um beijo to- das as amarguras da existência ? Um beijo d*elle era melhor que um dia de sói, era a suprema caricia para o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando tam- bém, com o crescimento do Ântonico! Em creança elle apertava-a nos bracinhos e enchia-lhe a cara de beijos ; depois, passou a beijal-a só na face di- reita, aquella onde não havia vestigios de doença; agora, limitava-se a beijar-Ihe a mão ! A ^rd A CAOLHA 9Õ Ella comprehendia tudo e calava-se. O filho não sóffria menos. Quando em creança entrou para a escliola pu- blica da freguezia, começaram logo os coUegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamal-o — o filho da caolha, Aquillo exasperava-o ; respondia sempre : — Eu tenho nome! Os outros riam-se e chacoteavam-n'o ; elle queixava-se aos mestres, os mestres ralhavam com os discipulos, chegavam mesmo a castigal-os, — mas a alcunha pegou. Já não era só]na eschola que o chamavam assim. Na rua, muitas vezes, elle ouvia de uma ou de outra janella dizerem : Olha o filho da caolha ! Lá vae o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha ! Eram as irmãs dos collegas, meninas novas, innocentes e que, industriadas pelos irmãos, fe- riam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar ! As quitandeiras, onde ia comprar as goiabas ou as bananas para o Itinch, aprenderam de- pressa a denominal-o como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se agglomera- vam ao redor d'ellas, diziam, extendendo uma mancheia de araçás, com piedade e sympathia : — Ta /«, isso é pr'a o filho da caolha! O Antonico preferia não receber o presente a ouvil-o acompanhar de taes palavras ; tanto mais 96 ANCIÃ ETERXA que os outros^ com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado : — Filho da caolha, filho da caolha! O Antonico pediu á mãe que o não fosse buscar á eschola; e, muito vermelho, contou-Ihe a causa : sempre que a viam apparecer á porta do collegio os companheiros murmuravam injurias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas I A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho. Aos onze annos o Antonico pediu para sahir da eschola : levava a brigar com os condiscipulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para en- trar para um officina de marcineiro. Mas na offi- cina de marcineiro aprenderam depressa a cha- mal-o — o filho da caolha, e a humilhal-o, como no collegio. Além de tudo, o serviço era pesado e elle co- meçou a ter vertigens e desmaios. Arranjou en- tão um logar de caixeiro de venda ; os seus ex- collegas agrupavam-se á porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro em- bora, tanto mais que a rapaziada, ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos á porta nos saccos abertos ! Era uma continua saraivada de cereaes sobre o pobre Antonico ! Depois d'isso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarello, deitado pelos cantos, dormindo ás moscas, sempre zangado e sempre bocejante ! Evitava sahir de dia e nunca, mas nunca, acom- A CAOLHA 97 panhava a mãe ; esta poupava-o : tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o reprehendia! Aos dezeseis annos, vendo-o mais forte, pediu e obteve- Ihe a caolha um logar numa officina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a liistoria do filho o supplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhal-o ; que os fizesse terem ca- ridade ! Antonico encontrou na officina uma certa re- serva e silencio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia : sr. Antonico, elle perce- bia um sorriso mal occulto nos lábios dos offi- ciaes ; mas a pouco e pouco essa suspeita ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem alli. Decorreram alguns annos e chegou a vez do Antonico se apaixonar. Até ahi, numa ou noutra pretenção de namoro que elle tivera, encontrara sempre uma resistên- cia que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes máguas. Agora, porém, a coisa era diversa : elle amava ! amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapa- riguinha adorável, de olhos negros como velludo c bocca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assiduo em casa e expandia-se roais carinhosamente com a mãe ; ^um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou*a mesmo c ^8 AXCIA ETERNA na face esquerda, num transbordamento de esque- <^ida ternura ! Âquelle beijo foi para a infeliz uma inundação de jubilo! tornava a encontrar o seu querido filho! poz-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia comsigo : — Sou muito feliz... o meu filho é um anjo! Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fmo, a sua declaração de amor á visinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias o Antonico perdia-se em amargas conjecturas. Ao principio pensava : c É o pudor ». Depois começou a desconfiar de outra causa : por fim recebeu uma carta em que a bellâ moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se elle 'se separasse completamente da mãe ! Vinham explicações confusas, mal ali- nhavadas : lembrava a mudança de bairro; elle alli era muito conhecido por filho da caôllia, e bem comprehendia que ella não se poderia su- jeitar a ser alcunhada em breve de — mra da caolha^ ou coisa semelhante! O Antonico chorou. Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos ! Depois o seu rancor voltou-se para a mã^ Ella era a causadora de toda a sua desgraça ! Aquella mulher perturbara a sua [infância, que-* brava-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais A CAOLHA 99* brilhante sonho de futuro sumia-se deante d'ella ! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar -se d'ella; considerar-se-ia humilhado continuando sob o mesmo tecto ; havia de protejel-a de longe, vindo de vez em quando vel-a, á noite, furtiva- mente... Salvava assim a responsabilidade do protector e, ao mesmo tempo, consagraria á sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consen- timento e amor... Passou um dia terrível ; á noite, voltando para a casa, levava o seu projecto e a decisão de o expor á mãe. A velha, agachada á porta do quintal, lavava umas panellas com um trapo engordurado. O Antonico pensou : « A dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de... uma tal creatura? Estas ultimas palavras foram arrastadas pelo seu espirito com verdadeira dôr. A caolha levantou para elle o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o puz na face, disse : — Limpe a cara, mãe... Ella sumiu a cabeça no avental ; elle continuou : — Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito ! — Foi uma doença, respondeu sufTocadamente a mãe : é melhor não lembrar isso ! — É sempre a sua resposta; é melhor uão lembrar isso! Porque?! 100 ANCIÃ ETERNA — Porque não vale a pena; nada se reme- deia... — Bem ! agora escute : trago-lhe uma novi- dade : o patrão exije que eu vá dormir na visi- nhança da loja... já aluguei um quarto : a senhora fíca aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujei tar-nos !... Elle, magrinho, curvado pelo habito de costu- rar sobre os joelhos, delgado e amarello como todos os rapazes criados á sombra das officinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquellas palavras toda a sua ener- gia, e espreitava agora a mãe com olho descon- fiado e medroso. A caolha levantou-se, e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém : — Embusteiro ! o que você tem é vergonha de ser meu filho ! Saia ! que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato ! O rapaz sahiu cabisbaixo, humilde, surpreso da attitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata ; ia com medo, machinalmente, obedecendo á ordem que tão feroz e imperativa- mente lhe dera a caolha. Ella acompanhou -o, fechou com estrondo a porta, e, vendo-se sò, encostou-se cambaleante á parede do corredor e desabafou em soluços. A CAOLHA 101 O Antonico passou uma tarde e uma noite de angustia. Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar á casa ; mas não teve coragem : via o rosto colérico da mãe, faces contrahidas, lábios adelga- çados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho — e sujo de puz; via a sua attitude altiva, o seu dedo os- sudo, de phalanges salientes, apontando4he com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ella to- mara para dizer as verdadeiras e amargas pala- vras que lhe atirara ao rosto ; via toda a scena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante. Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, ra- ramente a procurava. Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sin- ceramente tudo que houvera. A madrinha escutou -o commovida ; depois disse : — Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ella não quiz, ahi está! — Que verdade, madrinha?! — Hei de dizer-t*a perto d*ella; anda, vamos lá! Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho, — queria mandar-lhe a roupa 6. "N 102 ANCIÃ ETERNA limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que dissera e tinha passado toda a noite á janella, [ esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e vasio e já se quei- xava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ella ficou immovel : a surpreza e a alegria amar- raram-lhe toda a acção. A madrinha do Antonico começou logo : — O teu rapaz foi supplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui hontem, e eu aproveito a occasião para, á tua. vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito ! — Gala-te! murmurou com vóz apagada a caolha. — Não me calo tal ! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! quem cegou tua mãe... foste tu ! O afilhado tornou-se livido ; e ella concluiu : — Ah, não tiveste culpa ! eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mão- zinha um garfo; ella estava distrahida, e antes que eu pudesse evitar a catasti'ophe, tu enterraste- lh'o pelo olho esquerdo ! Ainda tenho no ouvido o grito de dòr que ella deu! O Antonico cahiu pesadamente de bruços, com um desmaio ; a mãe acercou-se rapidamente d*elle, murmurando tremula : — Pobre filho ! vês? era por isto que eu não lhe queria dizer nada ! IN EXTREMIS — Estás prompta, Laura? perguntou o doutor Seabra entrando no quarto de toilette da esposa. — Estou... só me faltam as luvas... Como me achas ? — Linda! Elle não mentia : a mulher parecia-lhe ainda mais formosa e mais fresca, com o seu vestido azul claro, muito leve e o chapéozinho de rendas finas bem pousado na cabelleira loira, de ondas largas. Ella sorriu, contente, pulverisando-se com íuhite rose; elle franziu as sobrancelhas grisa- lhas, percebendo, através da carnação delicada da sua mulherzinha um intimo estremecimento de vaidade satisfeita. — O carro está na porta ? perguntou a moça com modo distrahido, mirando*se toda num grande espelho e a passar, num ultimo toque vaporoso, o pompon de veloutine pelo pescoço branco e perfeito. — Está... e lá tens o ramo de rosas que pe- diste... 104 AXCIA ETERNA — Como és bom ! . . . — Hoje as corridas devem ser muito anima- das. O tempo está lindo!... Levas a pequenina? — Não. Mamãe toma conta d'ella, já a mandei para lá... Sabes? Estou hoje com tanto leite!... tenho medo de manchar o vestido... que vergo- nha se... — Escuta, interrompeu elle; antes de irmos para o Derby, parece-me que deveríamos entrar um pouco em casa do Bruno Tavares... O doutor Seabra sentara-se atraz da mulher e contemplava-a no espelho, com olhar prescru- tador e vigilante. Viu-a estremecer; fez uma pausa; ella suspendeu o pompoHy á espera da con- clusão. Elle acabou por fím. — O Bruno está muito mal... creio mesmo que não escapará ! Laura voltou-se, muito pallida, com os olhos esgazeados e os beiços trémulos. O marido baixou o olhar, entristecido. Havia muito tempo já que elle sabia quanto amor a es[)0sa consagrava ao Bruno. O seu ciúme de marido não explodira nunca, mas concentrava-se, cada vez mais amargo, no fundo do coração. O outro era moço, elle já se avisinhava da velhice; o outro era um sonhador, um idealista, sympathico á imaginação ardente de Laura ; elle era um homem de sciencia, materia- lista, descrente, já sem forças para encantar nin- guém. Conhecia, estudava sem tréguas o espirito e o coração da mulher e confiava nella. IN EXTREMIS 105 Laura era honesta, dedicada, e abafava com animo forte o seu amor peccaminoso, nas dobras de um manto de virtude e de sacrifício. Elle sabia que o Bruno não se declarara nunca, mas que, o que os lábios calavam respeitosamente, diziam o olhar, a sua pelle quente, o som de sua voz moça e o arrojo da sua phantasia de apaixonado 1 Quantas vezes o doutor Seabra, fingindo lêr os seus livros de estudo auscultava de longe aquelles dois corações, que se conservavam alli, um em frente do outro, mudos e ternos, emquanto as boccas fallavam de poesia e de flores, de luar e de musica, de aves e de estrellas, de tudo que brilha, que alegra, que enthusiasma e que une as almas apaixonadas. Elles liam junctos, contavam*se scenas da in- fância, alegremente, com interesse mutuo; e o doutor Seabra passava as paginas seccas do seu livro tremulameAte, com os olhos húmidos e o coração pesado. Tinha medo de intervir, calava os seus receios, esperando sempre uma solução ou um meio de levar a sua Laura para outras terras, sem mostrar o seu zelo, com vergonha de parecer ridiculo ou de oiTender a esposa. Ella era trefega, graciosa, mas firme. Mesmo naquelle dia, elle comprehendia bem que toda a sua graça, todo o seu perfume, toda a sua gentilleza se dirigiam ao outro, que esperava encontrar nas corridas^ na archi bancada... Eram para o outro a doçura do seu ramo de 106 AXCIA ETERNA rosas, o mimo das suas rendas finas, o colorido brando da sua toilette primaveril ! Voavam para o outro todo o seu pensamento, toda a sua von- tade, toda a sua alegria ! Laura continuava pallida, suspensa. — Quem medisse isto foi o medico; continuou o marido. Gomo és amiga da familia lembrei-me que desejarias talvez ir lá... — Sim !... vamos, vamos ! Desceram. O dia estava esplendido, passavam carros cheios de moças para as corridas. Sorria o sol, doirando o espaço, e o rumor de um do- mingo festivo alegrava as ruas. Laura sentou-se muito calada, apertando nas mãos com desespero o seu ramo de flores. O ma- rido sentia-lhe a dòr através do silencio e do olhar parado de quem vè phantasmas... Tinha pena d'ella, d*essa pobre amante vir- tuosa, sonhadora e casta. Fallecia-lhe a coragem de perturbar-lhe a magoa e o pensamento com uma palavra ou um simples gesto. Aquella piedade singular enchia-o de pasmo, a elle mesmo ! Ella parecia-lhe agora um pouco sua filha, em- bora a adorasse como mulher ! Era tão moça, tão inexperiente, mas tão meiga, tão dócil, que se jul- gava com o supremo direito de a conduzir com carinho^ na solicitude amável de um pae. Gom- prehendia a firmeza do caracter da moça, sabia que ella preferiria morrer a enganal-o grosseira- IN EXTREMIS 107 mente e que toda a sua peixão pelo Bruno era feita de imaginação e de sonho ! A culpa não era d'elles, mas sua, que já tinha cabellos brancos, as falias amortecidas, o espirito inquietado por atribulações diffe rentes, A morte d'aquelle pobre rapaz era um allivio para o seu coração. Desapparecido elle, teria mor- rido a causa do seu ciúme amargo e irremediá- vel. Laura continuaria por longo tempo a amal-o nas suas orações, através das estrellas ; mas o tempo iviria socegadamente attenuar-lhe as sau- dades... e tudo acabaria em doce paz. Se o outro não succumbisse... elle então arrastaria a esposa para bem longe, sem que ella desconfiasse por- que, temendo entretanto a lucta e descrente da victoria ! Sentia que o pensamento dos dois unir-se-ia sempre através das distancias, arrastados pelo mesmo ideal, pelo mesmo ardor e pela mesma esperança ! Sim, só a morte, a morte bemdicta, poderia cortar com as suas azas frias aquelle amor nascente... Quando o carro parou, Laura desceu sem esperar auxilio e correu para a casa do Bruno. Dentro havia um silencio triste, um ar de tumulo.,. A mãe do moço appareceu-lhes chorando. O filho desenganado pelos médicos ; e descreveu os horrores da febre que o levava assim, rapida- mente. — De mais a mais elle nega-se a todo o ali- 108 ANXIA ETERNA mento, dizia a pcibre senhora ; só consegue tomar leite... Os médicos mandam-n'o tomar leite de peito, tenho chamado amas... umas não querem dar-lhe o seio, outras recusam-se a tirar o leite com a bomba ! E o meu filho morre... meu filho morre I Laura olhou para o esposo ; conservaram-se mudos um em frente ao outro. A dona da casa levou-os por fim para o quarto do doente. O moço, enterrado entre as dobras dos lençóes, pareceria dormir se não movesse continuada- mente os lábios muito seccos. Exhalava-se de todo o seu corpo um calor intensíssimo de febre. A irmã mais velha vigiava-o solicitamente, sentada ao pé do leito. — Já veio a ama, mamãe ? perguntou ella com voz chorosa. — Ainda não! Bruno não abriu os olhos, mas uma ligeira contracção arrepanhou-lhe as faces. O doutor Sea- bra estremeceu. Parecia-lhe a morte ! Laura vol- tou-se de novo para o marido, com o rosto trans- tornado e o olhar interrogativo. Elle vacillou um momento ; depois fez-lhe um signal aftirmativo, muito vago, quasi impercep- tível ! A moça ajoelhou-se rapidamente e desabotoou com os dedos nervosos e tacteantes o seu lindo vestido de seda azul claro. O marido curvou-se, tremulo, com as narinas dilatadas e o coração op- IN EXTREMIS 109 presso ; arrependido do seu consentimento, ia tal- vez dizer — não ! mas Laura tirara o seio túmido, branco, onde as veias extendiam ténues fios azu- lados e encostava o bico róseo á bocca ardente c secca do moribundo. Ella, muito curvada, encobria a meio o busto do enfermo, elle engulia o leite a largos tragos, sofre- gamente, descerrando a pouco e pouco os olhos. A commoção de Laura era immensa I Salvar o seu amor, o seu amante sonhado, a sua espe- rança, com o leite da sua carne, o sangue da sua vida, era um goso de inextinguível doçura! Não era a volúpia, a paixão sensual que vibrava no seu corpo frágil de mulher moça, mas uma piedade, uma ternura que lhe alagava a alma, de tal geito que a fazia amar agora o moço, como uma mãe adora o filho pequenino... Elle abriu completamente os olhos : reconhe- ceu-a... houve um sorriso entre ambos, um clarão de verdade ! Mas a febre exigia mais leite e elle continuou a chupar com sofreguidão a carne da mulher que nem em sonhos profanara nunca, di- zendo-lhe com o olhar tudo que tinha sempre calado — que a amava... que a amava!... até que a prostração veio de novo cerrar-lhe as pál- pebras e que elle adormeceu profundamente, sem contracções, com um sorriso de paz nos lábios satisfeitos... Laura escondeu o seio, tremula e feliz... Só o doutor Seabra coraprehendeu que aquello 7 110 ANCIÃ ETERNA somno do moço era o ultimo, c foi com piedade e commo<^o que viu Laura levantar-se e dizer-lhe, toda d*elle, atirando-se aos seus braços, com ar victorioso e sincero : — Obrigada, meu querido.., como tu és bom ! A BOA LUA A MARIA CLARA DA CUNHA SANTOS O milho cahiaem granulações de ouro, por entre os dedos rugosos, curtos, côr de fumo secco, do velho Samé. Os bisnetos riam-se ás escancaras, acompa- nhando o andar vacillante do bisavó, que mal arrastava os pés doentes sobre os laivos azinha- vrados do chão húmido. Chovera, e o campo abria-se por alli fora, nú, só com uns velhos tocos de madeira podre, onde zumbiam abelhas e despontavam róseas orelhas de páo p'ra lhes ouvir a musica. O tio Samé Qzera cem annos pelo S. Miguel; dera de enfraquecer, pelos últimos tempos ; estava a acabar todos os dias. Nos seus olhinhos garços já havia a névoa da idiotia, a ausência da alma, qud se lhe desprendia do corpo aos pedaços. Cahiam-lhe falripas brancas, ásperas e lisas, como pallida moldura ás carquilhas do seu i*os— 112 ANCIÃ ETERNA tinho sumido, de maxilas salientes e pelle azei- tonada. Todo elle era miúdo e enrugado. O pobre tinha perdido a fé e a memoria das coisas, menos do tempo das sementeiras e das colheitas. Con- tava as luas, sabia de cór o kalendario. Não ati- nava com os nomes dos netos nem da creançada. Confundia todos : já nem sabia o numero dos filhos nem a graça da sua defunta mulher, que o fora por longuíssimos annos, nem mesmo sa- beria responder pelo seu nome — Samuel, que lhe valera o doce appellido de Samé ; comtudo, aconselhava do seu canto quando se devia cortar a mandioca, bater o arroz, colher o feijão ou a batata, e o seu aviso era ouvido como de sábio, seguido como de Deus ! Inda assim, se morria alguma creança em casa, a mãe, desesperada, reçumava rancor con- tra esse velho, teimoso em viver e que bem po- deria ter-se ido embora, em logar do filhinho innocente. E nesses dias a comida era-lhe atirada como a um cão intruso, sem direito ao carinho de ninguém. Com cem annos e cinco mezes, ainda o Samé quiz ajudar numa sementeira de milho. A lua era boa, grossas carradas haveriam de ranger por alli, atulhadas de espigas maduras, seccas, aos montões. Os netos enchiam a roça de barulho; uma gralhada! Elle media os passos, silencioso; de tempos a tempos entreabria os dedos e os grãos A BOA LUA 113 de milho cabiam, um a um, como contas de um rosário de ouro partido por um santinho velho, das antigas lendas. E foi andando assim, devagar, devagar, com as pernas em tesoura, os pés cada vez mais in- cliados, o olhar embebido no sol, que abria no fundo horizonte um enorme meio circulo verme- lho. Os netos cantavam alto, os bisnetos riam ao longe, ruidosamente; e aquella bulha era para elle como a do vento que passasse, arrastando folhas mortas, varrendo caminhos, abrindo rama- das, carregando sementes e fecundando a terra. Sorria o velhinho para o so] poente como a um amigo velho de quem se despedisse com um afago, quando os pés já dormentes lhe negaram outras passadas e elle cahiu para a frente, sobre o peito chato. Não lhe doeu a queda ; a terra estava fofa, a carne amortecida; teve uma tontura, sumiu-se- lhe tudo da lembrança ; mas a pouco e pouco vol- tou-Ihe a acção e procurou levantar-se, tacteando um velho tronco negro, cavernoso, que allí estava em frente, roido de bichos, mal ligado á terra. Tio Samé não conseguiu mover-se, mas re- parou que irrompia d*aquella ruina um galliito verde e tenro, macio ao tacto, doce á vista, e quedou-se aolhal-o espantado, com a bocca aberta, a baba em fio, as falripas brancas cabidas sobre as largas orelhas. 114 ANCIÃ ETERNA Julgara aquella arvore morta havia muito, e num relance fugitivo invejou as coisas que duram longo tempo, ou que nâo morrem nunca, como aquelle sol vermelho sempre quente e aquelle tronco que nas suas fibras despedaçadas ainda encontrava seiva para novas gerações ! E o tio Samé beijou a terra, o seu único amor verda- deiro, beijou-a uma, duas, muitas vezes, com os braços abertos, as unhas fincadas no chão. — Bisavó morreu ! gritaram de longe ; e vie- ram buscal-o ao collo, como a uma creança. Levaram-no para dentro, affirmando que elle estava no fim. Uma neta fez-lhe a cama de limpo, outra vasou-lhe o caldo pela bocca, alagando-lhe o peito, com impaciência. A nora accendeu o ora- tório e baixou da parede o crucifixo de ébano. Samé passeava os seus olhinhos de cem annos por tudo, como a perguntar — para que? Estavam feitos os preparativos para a morte. Quando ella entrasse encontraria chammas de velas, toalhas de crivo, ramos de flores, imagens de santos e uma alma abençoada pelo padre, que um dos bisnetos fora chamar á pressa. O padre veio e perguntando ao Samuel pelos seus peccados, ouviu em resposta que as sementes germinariam depressa, porque a terra estava hu- ( mida e o sol ardente... I' Riram-se uns, sorriram outros. O padre afas- ^ tou-os c tornando á cabeceira do velhinho, disse- f lhe : i í- ■'., r. 4i .!*■ À BOA LUA 115 — Todo o homem vive sujeito á tentação do inimigo; confessa sem pejo os teus peccados ! Samuel respondeu, sorrindo, que a lua ia ser propicia : os pescadores fariam boas pescas, os agricultores óptimas colheitas. A estação seria favorável aos pobres. Cahiu a absolvição sobre a cabeça branca do velho. Filhos e netos rezaram uma ladainha arras- tada e tristonha. Samé ouvia aquelle ruido sem determinar-lhe o sentido, como se fora o de vento passando á noite fora das portas de sua casinha rústica. Depois da ladainha a ceia, depois da ceia o somno, — todos adormeceram ; só o tio Samé ficou abrindo para a lamparina os seus olhinhos de cem annos e foi assim que elle viu uma som- bra esguia, longa, desenrolar-se das traves do tecto e descer devagar, devagar, pela parede fronteira, sem barulho, com a cautela de um as- sassino... Tio Samé tremeu. Uma das netas dormia alli mesmo, no chão, com o seio nú, os braços nus, o queixo erguido, a garganta bem illuminada. A cobra desceu esumiu-se entre os lençôes, sem nem mesmo fazer rumor na esteira... Samé abanava os braçx)s, mudo, inerte e espavorido, até que a rapariga, sacudida por uma convulsão tremenda, gritou alto, e o reptil fugiu, cascalhando, pela parede acima... 116 ANCIÃ ETERNA Na manha seguinte morria a neta do velho Samé; mas elle ílcou ainda, movendo os dedos trémulos sobre o lençol branco, no gesto de se- mear a terra e aproveitar a boa lua.. ESPERANDO... — Fecha aquella janella que deita para a rua... assim; abaixa o store... agora abre as duas do jardim. — Está bem ? — Está bem. Vae arranjar-te ; põe o avental branco bordado, que eu te fiz, e vê lá se levantas esse cabello da testa ; gosto das testas nuas ! A criada sahiu. A dona da casa, moça, gentil, alegre, começou a dar uns retoques na mesa, can- tarolando na sua meia voz de soprano, um romance novo. Agora punha ao lado da mesa o canário fa- vorito sobre uma corbeille de flores naturaes, d'ahi a pouco temperava a salada, escolhendo com as pontas dos dedos, muito delicadamente, as folhi- nhas mais tenras ; revistava as garrafas de crys- tal, os talheres, os pratos, escondia dentro do guardanapo do marido uma hastezinha mimosa de avenca, onde espetara um cartão com esta pa- lavra : — « Adoro-te ! » Modificava, sob o musgo fresco da fructeira, a posição das uvas e dos pe- cegos vermelhos, mudava para outro lado o ga~ 4. IIH ANCIÃ ETERNA Iheteiro ; ali>ava as coberturas das cadeiras, descia ainda mais o slore de cretonne !>ranco, e, debru- çando-se das janellas do jardim, puxava para den- tro os galhos floridos das trepadeiras. Depois, relanceou por toda a sala os seus olhos vivos de burguezinha feliz. Notou que um quadro estava ligeiramente inclinado para a esquerda e deu pela ausência da geleira sobre a étagère. Correu a reparar as duas faltas e sahíu. Foi á cosinha. — Então, André, a sopa esta bôa?... eo peixe... deíxa-me vér o peixe... E, avançando o narizinho arrebitado, ella chei- rava as panellas, fazendo os seus commentarios. — Olha, ó André, o roast-beef não me parece bom... O cosinheiro franziu a testa, indignado; ella continuava. — Ora ! as ervilhas estão com bispo ; logo as ervilhas, de que Luiz gosta tanto ! — Perdão, minha senhora, as ervilhas não estão queimadas! — Não estão queimadas ! e que cheiro é este? — E' mesmo o cheiro das ervilhas. — Onde viu você ervilhas com cheiro a fumo? — Prove-as, minha ama. Para convencer- se ella provou as ervilhas; achando -88 deliciosas, murmurou disfarçada- mente : está bom, está bom... e os bolinhos, fez — Esquoci-me: também ha tanta coisa!... ESPERANDO... 119 Foram novos ralhos; mas, afinal, certa de que o jantar agradaria ao marido, ao seu amado Luiz, com quem se casara havia apenas um anno, ella voltou para dentro. Foi pedir conselhos ao seu psyché. Estava paí- lida. « Isto ha de ser, pensou, por causa das fitas verdes. » Trocou-as por fitas azues... estudou-se: conti- nuava feia... «Bem! agora, fitas côr de rosa... hão de me ir melhor... » Mas as fitas côr de rosa desagradaram-lhe tanto como as azues e as verdes^ Lembrou-se do collar de coral. Os collares de co- ral passaram de moda... mas que importa! são bonitos ! Atou sobre o pescoço alvo e roliço um fio de coral, abriu um pouco mais o vestido, e afo- gou entre as rendas do peito a flor côr de sangue de uma orchidea nova. « São quasi seis horas ! Luiz não tarda ! vou 6speral-o ao piano! » Tocou varias peças, ora um idyllio, ora uma sonatina; mas, impaciente, des- cahiu a dedilhar polkas e valsas. De vez em quando levantava-se, ia á janella. Viu passar um visinho, o Ramos, carregado de embrulhos, e calculou : « A mulher do Ramos é mais feliz do que eu... elle tem mais pressa de a vèr do que Luiz de me vér a mim!... » Apoz o Ramos, passou um velho gordo, que vinha habitualmente depois do marido, logo no bond immediato ; viam-n*o quasi sempre passar iJÍ) ANCIÃ ETERXA ainivez as grades do jardim, onde ella descia para Tf :o:htr Luiz. o relógio marcava já seis e um quarto! Ella nfio voltou para o piano: installou-se na janella. Começou a sentir fome; a impaciência cresceu. Parecia que iria devorar iodo a roast-beef l « De- cididamente, Luiz, suppunlia ella, teve algum negocio grave a prendel-oaté mais tarde... aposto em como vem naquelle bond... » Mas o bond pas80U. c Vamos a vèr! se o primeiro carro que paHHar fór tilbury, é porque elle vem antes das sei» e meia ; se fór coupé é porque só vem ás sete. » O primeiro carro a passar foi uma caleça. A'tt sete horas Luiz não tinha chegado. A copeira veio perguntar-lhe se podia tirar o jantar ; a infe- liz rapariga, em pouca harmonia com o cosinheiro, estorcia-se de fome. A ama rcprehendeu-a : quando fór occasião eu saberei mandar servil-o! disse. Ella Já não tinha vontade de comer : passada a horn habitual, o estômago não sentia necessidade do alimento. Entretanto, continuava á janella. Eram jú sete e meia ! A casa do Ramos illumina- va-(»o; appareciam vultos na sala de visitas; uma da» (Ilhas ia para o piano e ella adivinhava o Ra- mos, palitando os dentes, recostado no sofá, ao lado dn esposa, que estava de casaco branco e saias engommndas. c São velhos, e são mais felizes do qud ou i, suspirava. Deram oito horas. Voltava multa gim to para a cidade, de onde os bonds vi- nham agora quasi vazios. Por que será que Luiz ESPERANDO... 121 não veio? conjecturava a triste esposa. Sahiu da janella, e, cahindo em uma poltrona, começou a chorar. Erguía-se no seu espirito uma suspeita: a infi- delidade de Luiz! c Elle ama outra, ama outra com certeza! a estas horas ri-se a seu lado... logo virá com uma desculpa qualquer! » Lembrou-se de fugir para a casa da mãe; sim, lá ao menos teria companhia, carinhos, alegria! e Luiz, quando chegasse, comprehenderia não ter por esposa uma mulher passiva, de quem pudesse zombar! Levan- tou-se, foi ao seu quarto, e, tendo vestido uma capa, ia coUocar o chapéu, quando foi ferida por uma idéa horrorosa: Um desastre! « Meu Deus! exclamou a pobrezinha : Luiz foi pizado por algum trem!... Atterrorisada, hirta, no meio do quarto, ella assistia a toda a scena. O marido atravesava a rua, correcto, dístincto, elegante... súbito, es- barra-se nelle um individuo, cae*lhe a luneta; Luiz curva-se para erguel-a; nisto ouve gritos, é atropelado, cae, e uma enorme carroça, carregada de pedras, roda-lhe pesadamente por sobre o ven- tre ! Apitos, agrupamento de povo, muito sangue na calçada, e o adorado Luiz é tirado em braços, espliacelado, inerte, morto! Correu de novo á janella, debruçou-se : nin- guém! A rua estava silenciosa. Teve vontade de gritar: Luiz, Luiz! e as lagrimas rolavam-lhe grossas pelas faces pallidas. Era a primeira vez que tal lhe acontecia; evidentemente succedera ao 122 ANCIÃ ETERNA esposo um desastre qualquer ! Lembrou-se de ter visto no escriptorío, uma vez que lá fôi*a surpren- del-o no trabalho, um revólver sobre a secretária. Aquillo fizera-lhe impressão, a ponto de rogar ao marido que se desfizesse d^essa arma tão peri- gosa... Quem lhe diria que não fosse esse mal- dicto revólver que, por qualquer acaso, matasse o esposo ! ? Elle era distrahido e myope : puxando uns papeis, tacteando a mesa, á procura de algum objecto, poderia bater no gatilho e a bala ter par- tido ! A cada carro que se approximava elia estreme- cia: « É elle, vém-no trazer desfigurado... mori- bundo... O' meu Luiz! meu Luiz!! Nisto uns passos conhecidos esmagam* a areia do jardim, ellá levanta-se e escuta... sobem a es- cada, tocam de uma maneira especial a campai- nha; e ella, reconhecendo o signal, dá um grito de alegria e corre para a porta, indo abraçar o esposo, commovida e tremula ! — Que c isso, Himi ? perguntou elle, attonito ; como estás transtornada ! — Oh! Luiz! por que tardaste tanto?! Que fiusto que eu tive ! meu Deus ! Deixa-me vèr-te bem ! Que te succedeu ? ! -^ Mas, filhai não me succedeu nada de ex- 4i:aordinario ! Tolinha! E' preciso acostumares-te I — Acostumar-me... — Terás muitas vezes de jantar sozinha... — Ah! ESPERANDO... 123 Emquanto elle lhe expunha o motivo da sua ausência, ella via, maguada, extinguir-se o inol- vidável periodo da sua lua de mel ! Como badaladas fúnebres, soavam e resoavam aos seus ouvidos as phrases do marido : — E' preciso acostumar es-te,.. Terás muitas vezes de jantar sozinha! INCÓGNITA — Ah ! o senhor conheceu-a ? — De vista. — Devia ter sido feia ! — Não; era formosa. — Que nome tinha, sabe? — Ignoro... Faz-me o favor do seu fogo ? — Pois não... Houve uma pausa ; e, emquanto um dos inter- locutores, o que perguntava, examinava com in- teresse o interior do Necrotério, o outro ia accen- dendo muito pachorrentamente o seu cigarro. Em frente d'elles, sobre o mármore branco de uma das quatro mesas, estava o cadáver de uma mullier. A claridade frouxa de um dia de inverno en- trava pela larga porta e pelas janellas, indo cahir sobi*e o corpo semi-nú da infeliz, a envolvel-a, como uma grande mortalha transparente. Tudo triste, tudo côr da neve, tudo frio ! O vento entrava, cortante como uma lamina bem afíada. 12C ANCIÃ ETERNA No seu nicho, sobre fundo azul, a Virgeni da Piedade, sustendo nos joelhos o corpo inerte do Christo morto, evocava, como um exemplo de profunda agonia, a sua grande dõr. — Infeliz, dizia um dos espectadores, encos- tado ao humbral, olhando para aquelle pavoroso espectáculo, numa fixidez de animal magneti- sado. O cadáver estava inchado pela absorpção da agua e já manchado da gangrena. Os cabellos eno- vellados empastavam-se sobre as claviculas, nu- mas madeixas pretas, curtas, ásperas, sujas de areia e de particulas de algas. Os olhos, entre- abertos, pareciam, na sua névoa sinistra e glacial, feitos da agua que os havia apagada e que se tivesse coagulado em dois grandes glóbulos gela- tinosos e opacos. Expressão medonha, feita pelo terror da onda e pelo terror da morte ! O dialogo continuava : — O senhor diz que ella não era feia ! No* en- tanto parece horrorosa ! Como a morte transfigura... como a morte é má! O outro sorriu-se, respondendo : — Se estivesse, como eu, habituado a olhar para isto, já se não impressionaria assim. Vá-se embora... está pallido e não convém abusar de uma impressão nervosa. Separaram-se. E o sujeito que conhecera a des- graçada morta, noutros tempos, em que ella era INCÓGNITA 127 talvez alegre, jovial, risonha, ia andando despre- occupadamente, a bambolear a grossa bengala de castão de prata, e a pensar no almoço do hotel, nas ostras frescas e no vinho leve. O outro, ao contrario, tremia ; sentia as palmas das mãos húmidas e gélidas, como se as tivesse passado sobre a carne moUe da defuncta ; olhava com raiva para o mar azul franjado de espuma alvinitente e semeado aqui e além por umas velas brancas como azas de cysne ; sentia um cheiro de cadá- ver e de acido phenicô em tudo, na rua, no pró- prio fato, no chapéu, no lenço, nas mãos... Todo esse dia foi para elle de spffrimento ; numa obsessão doentia, scismava continuamente nessa morta desconhecida, por quem talvez tivesse pas- sado e a quem talvez tivesse podido soccorrer ou aconselhar. A sua responsabilidade de ente humano, oCfen- dia-se áquella revelação de padecimento sem con- solo. A felicidade depende ás vezes de tão pouco ! Querendo reagir, procurou em vão entreter o espirito, arejal-o com outras idéas. AíinaU não fora por causa d'elle que aquella mulher se ma- tara ! Depois, não lia elle todas as manhãs, já sem abalo á força do costume, tantas noticias de crimes, tão dolorosas revelações nos jornaes ? Porque haveria agora este facto de o impressionar mais qae tantos outros? Então, só porque os seus olhos tinham visto aquelle corpo immundo, já a 128 ANCIÃ ETUKNA t. sua impassibilidade dava logar a uma tamanha vibração de nervos ? Devia pensar em outra coisa; queria-o, mas era vão o esforço, á resistência acudia a curiosidade: — Coitada, porque se teria matado? Desgraças de amor, naturalmente. Uma paixão; sim, devia ter sido isso mesmo... Quando vol- tasse para casa passaria outra vez pelo Necroté- rio... esperava já lá não encontrar o cadáver, sabel-o reconhecido pela familia, tirado d*alli, d aquella exposição ignominiosa, A'quella hora alguém choraria a seu lado, já haveria flores sobre o seu corpo immundo, e o perdão da familia sobre o seu crime nefasto ! Ainda dois dias antes ella devia ter sido bonita, fresca, louçã... Naturalmente aquelle por quem ella se matou, foi procural-a, e, humilhado, arrependido, irá acompanhal-a ao cemitério, fazendo-lhe um en- terro bonito e espargindo violetas sobre o seu tumulo, com saudosa ternura. Talvez a matasse uma traição... o amante ca- saria... o marido amaria outra... a vergonha... o ciúme... Fosse o que fosse, ella estava morta, desfigurada, repugnante, e não lhe podia sahir do pensamento, numa obstinação cruel. E as mãos, e o fato e o lenço cheiravam a de- functo e a acido phenico! Sahiu de novo ; gyrou pelas ruas ; aqui um amigo alegre detinha-o, contando-lhe uma anec- INCÓGNITA 1*29 dota picaresca ; os outros riam, elle sorria ape- nas, condescendentemente, pensando nuns olhos vítreos, parados, e num corpo hirto e manchado de escuro. Entrou num botequim : muita confu- são; gente e musica estrepitosa. Mas todas aquellas pessoas, quasi todas homens, pareceram-lhe té- tricas, sombrias, pensativas. Nem uma garga- lhada! nem um dito de espirito faiscando no ar; bulha de passos, tilintar de vidros e metaes, unicamente rostos amarellados, olhos fixos no café das chicaras, e ao fundo uns músicos, vi- brando os seus instrumentos com desespero, num interesse de ganho mercenário. Achou estúpido aquillo e sahiu. Mas na rua, como em casa, sentia o mesmo cheiro e o mesmo desgosto. Sempre aquella mesa de mármore branca, inclinada, a Virgem no seu nicho de madeira, e o cadáver da afogada, com os olhos abertos e as algas mirradas presas no cabello. Entretanto o outro, que a conhecera, já nem pensava nella... E no espirito do impressionado rapaz voltava de vez em quando a impertinente pergunta : — Porque se mataria... porque?... Voltando para casa, parou do novo no Necro- tério. A morta já lá não estava. Sobre a mesa que ella tinha occupado, agora vasia, o sol punha, atravez dos vidros vermelhos e amarcllos das ja- 130 AXCIA BTERXA \ ■ nellas, umas rosas de luz côr de ouro e cór de t sangue. Trou\e-Ihe aquiilo algum socego, mas não se cohibiu de perguntar com interesse ao guarda se a infeliz fora, emfím, reclamada pela familia. — Xão, senhor, repondeu-lbe o guarda com amabilidade, ageitando no pescoço um lenço de lã azul. — Então ninguém a reconheceu ?! — Ninguém. — Ninguém a procurou ? — Ninguém. — Ck)itada ! O guarda espantou-se de vèr brilharem de com- moção os olhos d'aquelle importuno perguntador, que no entanto ia dizendo : — Não teve a desventurada pae, irmão ?V^:^;p ran<;a de pedir pousada ao João Romão : Oiriaria a>sim a peior parte du caiminho e dormiria com dl*.'. Por mal dos seus if-xM*»^. a noite estava negra e um ventozinho precur>ur de chuva agitava as ramagens, imitando vmz».*s exii-avagantes. Passado o negrume do mandiocal do Neves, ao dobrar mesmo a estrada, no angulo onde de dia tanto se enchera de arai;;'«s. Gilda estacou boqui- aberta. Atravéz do rendilhado ne^ro das calharias folhodas, ella viu luzes, granJes luzes bailando vagarosamente, lá na beira do rio. S. Nicolan me acuda! suspirou ella, com os joelhos bambos, o a>rai::~io aos pulos, estarrecida. S. Nicolau valeu-lhe, fazend^j-a reconhecer nas luzes, archotes de baga«>i de canna secca, que allu- miavam o João Romão, a Norberta e mais três parceiros, na pescaria do bagie amanello em tocas de pedras frias. O que enfureceu a Gilda foi vér o mulato abraçar NorU-rta, mesmo alli, á \ista dos outros... — Que jundiá que vocvs apanhem tenha veneno, 10. 174 ANCIÃ BTBRNA diabos ! rosnou ella com desejo de irromper pelo matto e ir bater naquella gente, ruim que nem cobra. Repelliu a idéa, estava sozinha, os outros ci*am muitos. Esquecendo-se de ir procurar o seu peixe gordo, sepultado entre folhas de inhame juncto á cruz de taquara, e que mesmo a escuridão não permittiria encontrar, Gilda seguiu para deante, tecendo idéas de vingança. — João Romão me paga, deixa está elle I Pen- sam que podem commigo... nãovè! Um uivo lamentoso atravessou a floresta e houve uma bulha de animal de rastos. Gilda nem foz caso. A raiva tirara-lhe o medo. As seis horas da manhã, D. Ricarda Maria appa- receu no Engenho, e, dando com a Gilda no tra- balho, gritou-lhe, furiosa : — Então, sua cachorra, é assim que você cum- pre ordens ? Contra o costume a negra baixou a cabeça, humi- lhada e sonsa, relanceando a vista para a Norberta que enchia um tipiti para a prensa, no meio de uma nuvem fina de farinha que o João Romão peneirava a seu lado. Norberta passava por ser a crioula mais bonita do Engenho. Era tafula, vestia- se de engommados. Pai*eceu á Gilda, atravéz da névoa branca, que ella se ria na occasião, e teve Ímpetos de lhe atirar á cara a cuia com que levava PERFIL DE PRETA 173 mandioca do coxo para o forno, que a Paula re- mexia com a longa pá. Tia Thereza, a africana velha entendida om rezas e feitiços, cosia os saccos, agachada a um canto, e, emquanto uns negros entravam com cestos de mandioca para a rasn t;x''ín, oiii ros tra- ziara-n'a do lavador para a covadoira, já bran- quinha como ossos nús... D. Piicarda Maria chupou o grande buço gri- salho que lhe ornava o rosto magro e ordenou ao João Uomào que deixasse a pennciragcm á Rita, e fosse elle para a machina. Depois voltando-se, inquiriu : — O coxo está secco? Que é do Viriato? — Viriato tá cortando mandioca, sim senhora... respondeu o Joaquim velho, que entrava suando sob um fardo de aipins. D. Ricarda Maria postou-se ao lado da bolan- deira e o mulato scntou-se, tanto se lhe dando fazer um serviço como o outro. A velha gritou então que abrissem a agua, e a engenhoca roncou. — É agora, pensou Gilda comsigo, voltando- se. Norberta olhava embevecida para o João Ro- mão, aproveitando a distracção da patroa. O mu- lato é que não podia desviar a vista do trabalho, sob pena de ficar sem dedos ou sem braços. A machina descrevia os seus movimentos rápidos, impellida pela força da agua, triturando, esfarel- lando as raizes brancas da mandioca, num mas- tigar incessante. V. f 176 AXCIA ETERNA Tia Thereza cantava nam fio delgado de voz, extendendoos pés gretados pelo chão, onde tremia uma roseta de sol cabida do tecto, de telha vã. Gilda observou : estavam todos preoccupados ; então, avançando, disse num berro furioso : — João Uomão I O mulato voUou-se assustado ea machina segu- rou-o logo pela mão direita, e levar-lhe-ia o braço se D. Ricarda Maria não o tivesse puxado imme- diatamente para traz, com um movimento rápido e violento. O sangue espadanou, houve rumor, o mulato caliiu. Gilda, vingada, num tremor de raiva e de espanto, dizia que só dera o grito ao perceber a catastrophe. Aquella mentira sahia-lbe tão limpa como se fora uma verdade. Só a Norberla, fula, espumando irada, a desmentia, xingando-a, em avanços de animal damnado : — Foi de propósito ! prendam aquelle diabo ! foi de propósito ! exclamava ella debatendo-se nas mãos das companheiras, que a continham a custo. — Como elle não quer mais saber d'ella ! foi de propósito ! Amaldiçoada ! Mas todas affirmavam que o caso deveria ter sido como a Gilda explicava, porque não? Fora tudo momentâneo, e a própria D. Ricarda Maria, alli de vigia, não se sentia habilitada nem para accusar, nem para defender... Eis ahi porque o João Romão nunca mais seduziu PERFIL DE PRETA 177 as creoulas dedilhando na viola aquellas modinhas faceiras e sentimentaes. Apezar de o ver maneta e de o saber pregui- çoso, Norberta fez-se a sua companheira definitiva. Essa trabalha por dois, e, sempre que vê a Gilda passar pela sua porta, cantando escarninhamente com as màos para as cosias, ella cospe três vezes, d *pendura do humbral o ramo de arruda, faz no vazio o signal da cruz e diz de modo a fazer-se ouvir da outra : — Tc esconjuro, diabo! >.: -^^^ ' .t?*-.-•,-. — «í'^;- -wm^^^^'-^^ »-«•.' '■. V',»*' ',?:-; fV^^ 184 ANCIÃ BTBRNA do odio, sangue espumante e embriagador! Um dia, depois de assistir no palácio a uma scena de pantomimas e arlequi nadas, Issira re- colheu-se doente aos seus aposentos ; tinha a bocc;i secca, os membros crispados, os ollios muito brilhantes e o rosto extremamente pal- lido. O noivo andava por longe a visitar provincias e a caçar livenas. Issira, extcndida sobre os coxins de seda, não conseguia adormecer. Levantava-se, volteava no seu amplo quarto, desesperadamente, como uma panlhera ferida a luctar com a morte. Faltava-lhe o ar ; encostou-se a uma grande columna, ornamentada com inverosimeis fíguras de animaes entre folhas de palmeira e de lodão ; e ahi, de pé, movendo os lábios seccos, com os olhos cerrados e o corpo em febre, deliberou mandar chamar um escravo. A um canto do quarto, extendida no chão, sobre a alcatifa, dormia a primeira serva de Issira. A princeza despertou-a com a ponta do pé. Uma hora mais tarde, um escravo, obedecendo- Ihe, extendia-lhe o braço robusto, e ella, arrega- çando-lhe ainda mais a manga já curta do hãa- siris, picava-lhe a artéria, abaixava rapidamente a cabeça, e sugava com sofTrego prazer o sangue muito rubro e quente ! O escravo passou assim da dôr ao desmaio e ' "'^TflF'."^-»*^''* • .■•,..•■ ^.>• .7» - A NEVROSE DA COR 185 do desmaio á morte ; vendo-o extincto, Issira ordenou que o removessem d*alli, e adormeceu. Desde então entrou a dizimar escravos, como dizimara ovelhas. Subiam queixas ao rei : mas Ramazés, jà velho, can(;ado e fraco, parecia indiíTerente a tudo. Ouvia com tristeza os lamentos do povo, fa- zendo-lhe promessas que nào realizava nunca. Não queria desgostar a futura rainha do Egypto ; temia-a. Guardava a doce esperança da immorta- lidade do seu nome. E essa immortalidade, Issira poderia cortal-a como a um frágil fio de cabello. Formosa e altiva, quando elle, Ramazés, mor- resse, ella, por vingança, fascinaria a tal ponto os quarenta juizes do julgamento dos mortos^ que elles procederiam a um inquérito phantastico dos actos do finado, apagando-lhe o nome em todos os monumentos, dizendo ter mal cumprido os seus deveres de rei ! Nào ! Ramazés não opporia a sua força á von- tade da neta de um Pharaó ! Que a maldicta casta dos escravos desapparecesse, que todo o seu san- gue fosse sorvido com avidez pela bocca rosada e fresca da princeza. Que lhe importava, e que era isso em relação á perpetuidade do seu nome na historia ? As queixas rolavam a seus pés, como ondas marulhosas e amargas; ellesoíTria-lhes o embate, mas deixava-as passar ! 186 ANCIÃ ETERNA Issira, encostada á mão, olhava ainda pela janella aberta para a cidade de Thebas, esplendi- damente illuminada pelo sol, quando um sacer- dote lhe foi dizer, em nome do rei, que viera da província a triste noticia de ter morrido o prín- cipe desastrosamente. Recebeu a princeza com animo forte tão ines- perada nova. Enrolou-se num grande véu e foi beijar a mão do velho Ramazés. O rei estava s6 ; a sua physionomia mudara, não para a dolorosa expressão de um pae sentido pela perda de um filho, mas para um modo de audaciosa e inflexível auctoridade. Acceitou com fi-ieza a condolência de Issira, aconselhando-a a que se retirasse para os seus domínios em Kar- nac. A cgypcia voltou aos seus aposentos, e foi sentar-se pensativa no dorso de uma sphinge de granito rosado, a um canto do salão. A tarde foi cahindo lentamente ; o azul do céu esmaecia ; as estrellas iam a pouco e pouco appa- recendo, e o Nilo extendia-se crystalino e pallido entre a verdura negra da folhagem. Fez-se noite. Immovel no dorso da sphinge, Issira olhava para o espaço ennegrecido, com os olhos húmidos, as narinas dilatadas, a respiração offegante. Pensava na volta a Karnac, no seu futuro re- pentinamente extincto, nesse glorioso amanhã que se cobrira de crepes e que lhe parecia agora interminável e vazio! Morto o noivo, nada mais W^wm^-i^y^r A NEVROSE DA COR 187 tinha a fazer na corte. Ramazés díssera-Ihe : — Ide para as vossas terras; deixae-me só... Issira debruçou-se da janella — tudo negro ! Sentiu rumor no quarto, voltou-se. Era a serva que lhe accendera a lâmpada. Olhou fixamente para a luz ; a cabeça ardia- Ihe, e procurou repousar. Deitando-se entre as sedas escarlates do leito, com os olhos cerrados e as mãos pendentes, viu, em pensamento, o noivo morto, extendido no campo, com uma ferida na fronte, de. onde brotava em gottas espessas o seu bello sangue de príncipe e de moço. A visão foi-se tornando cada vez mais clara, mais distincta, quasi palpável. Soerguendo-se no leito, encostada ao cotovello, Issira via-o, positi- vamente, a seus pés. O sangue já se não desfiava em gottas, uma a uma, como pequenas contas de coral ; cahia ás duas, ás quatro, ás seis, avolu- mando-se, ate que sabia em borbotões, muitu vermelho e forte ; Issira sentia-lhe o calor, aspi- rava-lhe o cheiro, movia os lábios seccos, bus- cando-lhe a humidade e o sabor. A insomnia foi cruel. Ao alvorecer, chamando a serva, mandou vir um escravo. Mas o escravo não foi. Ramazés attendia emfim ao seu povo, prohibindo á egypcia a morte dos seus súbditos. Um sacerdote foi aconselhal-a. — Cuidado ! A justiça do Egypto é severa, e vós já não sois a futura rainha... 188 ANCIÃ ETERNA Issira despediu-o. Perseguia-a a imagem do noivo, coberto de sangue. A prohil)içáo do rei revoltava-a, accen- dendo-lhe mais a febre do encarnado. Como na véspera, o sol entrava gloriosamente pelo aposento, atravez dos vidros de còr. A prin- ceza mordia as suas cobertas de seda, torcendo-se sobre a purpura do manto. De repente levantou- se, transfigurada, e mandou vir de fora braçadas de papoulas, que espalhou sobre o leito de pur- pura e ouro... Depois, sozinha, deitou-se de bruços, estirou um braço e picou-o bem fundo na artéria. O san- gue saltou vermelho e quente. A princeza olhou num êxtase para aquellc fio coleanteque lhe escorria pelo braço, e abaixando a cabeça uniu os lábios ao golpe. Quando á noite a serva entrou no quarto, absste- ve-se de fazer barulho, accendeu a lâmpada de rubins, e sentou-se na alcatifa, com os olhos espantados para aquelle sommo da princeza, tão longo, tão longo... I,. rtj,'**,» - , *".-;'"^, "•.-•' ■ . ■' ■ '■:-*T -■• AS TRÊS IRMÃS A ZALIXA ROLIM Havia muitos annos já que D. Thereza não via as duas irmãs. A segunda, D. Lucinda, partira lo- go depois de casada, com o primeiro marido, para Buenos Aires, e lá ficara sempre ; a mais moça, D. Violeta, fora habitar a Bahia com o seu esposo e alli estava gosando os triumphos académicos dos filhos e os respeitos delicados do seu vellio. Mas um dia, D. Thereza, apprehensiva, com medo da morte que se avisinhava, escreveu ás irmãs : — Que viessem ao Rio despedir-se d'ella e to- mar posse do que lhes pertencia. Interesse ou saudade... (quem lê claro em cora- ções tão bem occultos?) empurrou para as plagas nataes as duas senhoras. D. Thereza remoçou uns dias. Só ella ficara solteira e em casa dos pães, já ha tanto mortos, como um guarda fiel, depositaria de todas as re- líquias da mocidade d*elles e d*ellas! Assim, re- li. : .rr^rí^rV^;^ : 190 ANCIÃ ETERNA commendou á criada, mulata antiga, ex-escrava da familia, em todo caso uns trinta annos mais moça do que ella : — Ollia, Emília ! para a mana Lucinda arranja o quarto azul; aquelle da esquina... era o seu quarto de solteira... Ella gostava de canários... tinha sempre uma gaiola no quarto... era isso : bota lá a gaiolínha doirada do canário novo... Es- cuta! Lava hem tudo! Ella era muito faceira... não te esqueças do pó de arroz, de pôr sabonete fino e frascos de... espera ! qual era o cheiro que ella preferia?... Ah ! já sei ! jasmin ! manda com- prar essência da jasmins... — Sim, senhora. — Agora, para D. Violeta prepara o quarto branco, das três janellas... Era o quarto d'ella! Vô se arranjas muitas flores... Violeta era a nossa jardineira !... Olha, faze um ramo para o lavatório, outro para a commoda. Era assim que ella usava... Espera ! que pressa ! Manda comprar essência de violetas... era o aroma d'ella! — Sim, senhora... — Não te esqueças de nada ! — Não, senhora... A mulata sahiu, deixando D. Thereza aos guin- chos com um ataque de asthma. Não queria mor- rer deixando aquella casa em mãos indifferentes. Só as irmãs receberiam com amor aquelles trastes antigos, em que tantas vezes rolaram junctas, on- de os pães presidiam ás suas travessuras de cre- lf?ciB?í?5*V4'^--'Si-^-yv':^-:.'^.;:>:^'-: ■ -i-' AS TRÊS IRMÃS 191 ancas e onde; depois, os noivos as beijaram com embriaguez... A pobre coitada estava e desfazer-se, sentia, a cada arranco da tosse, desraanchar-se- lhe sob a peile sècca e enrugada a carcassa frágil e dolorida. O seu corpo, nunca amado, cabia, como um feixe de ossos partidos, para a sepul- tura. Como estariam as irmãs? A Lucinda deveria estar bem velhota ! Agora a Violeta, essa, apezar de mais moça, com tantos filhos e já tanta neta- Ihada, é provável que viesse tremula e bem acha- cada pela velhice! Havia já uns trinta annos que a não via... e á outra... uns bons quarenta! E D. Thereza revia com saudade o rosto pallido e formoso da esbelta Lucinda, de olhos verdes, dentes sãos, faces brancas como a neve ; e o ros- tinho delicado de Violeta, moreno, levemente ro- sado, com uns olhos travessos e negros e uma boquinha perfumada dejuventude, muito fresca e vermelha ! E apezar de calcular-lhes as rugas, só via dean- te dos olhos as figuras louçãs e radiantes das ir- mãs noutros tempos... A mulata apromptou tudo com esmero. D. The- reza, apoiada ao seu hombro e a uma bengala grossa, percorreu toda a casa. EUa tinha tido sempre a singular mania de conservar as coisas nos mesmos logares e em egual posição. Se man- dava renovar o papel de uma sala, exigia que o novo fosse exactamente egual ao que de lá sahis- se; e os trastes eram polidos, os estofos espana- 192 ANCIÃ ETERNA dos com escrúpulo e as alcatifas nunca substituí- das por outras que não fossem da mesma côr e de egual desenho... Para ella, aquellas velharias eram preciosidades raras. Xâo sahía nunca, não dava festas. Vagava no ar das suas salas um cheiro de mofo, denunciador do triste isolamento da sua vida de solteirona, sem sobrinhos, nem afilhados, nem ninguém ! Custava-lhe deixar todo aquelle esplendor em mãos alheias e anci-na pelas irmãs. Por uma coincidência, chegaram no mesmo dia D. Violeta, vinda da Bahia, e D. Lucinda, de Buenos Aires. A manhã estava de uma belleza incomparável ; o céu todo azul, aatmosphera morna, o que aprou- ve a D. Thereza, que poude alliviar o peso da roupa e cruzar sobre o vestido de seda roxo o seu bello mantelete de renda preta. A Emilia ajudou- a naquella tarefa. Toda a roupa comparticipava d*aquelle cheiro de humidade. Vestido havia tan- to tempo guardado, o que as rugas fundas denun- ciavam, não podia cheirar a sol nem a primavera. . . No topo da escada, com a cabecinha tremula sempre a dizer que sim, uma das mãos apoiada á bengala , a outra sumida no braço da mulata, D. Thereza esperava as irmãs com os olhos lumino- sos, molhados de lagrimas. Elias subiam, vaga- rosas também, fallando alto, uma com voz grave, outra em um falsete de gaita. Haviam de ser risa- dinhas, lembranças da mocidade... D. Thereza ordenara que se abrisse o salão AS TRÊS IRMAS 193 principal, e foram logo para lá as tres. O que ella notou, com certa alegria invejosa, foi que as ir- mãs andavam mais direitas, sem necessidade de apoio. Sontaram-se no salão. D. Lucinda faiscava de vidrilhos, descansando a papada còr de leite na rica seda preta da capa. Era enorme. A gor- dura disfarçava-lhe as rugas. O coquetismo da mocidade ainda mostrava os seus traços : lá esta- va o cabello pintado, cabido nas fontes em duas bellezas, á moda hespanhola. E de vez em quando saltitava um caramba, que rebentava como uma bomba naquella casa antiga e reservada. D. Violeta, essa guardara alguma coisa do seu aroma de flor, para a seccura da velliice. Era pequena, muito engelhada; vinha vestida de lã marro7i, com uma capa de rendas, de pouco enfeite. O que lhe dava graça era o cabello muito branco e a meiguice dos seus olhos negros, habi- tuados a sorrir para os netos travessos. D. Thereza era a mais acabada! Faltára-lhe o amor, faltaram-lhe as sagradas agonias da mater- nidade, e a sua existência passiva, concentrada, inerte, levára-a áquelle ponto, de passa secca já impedernida e inti*agavel ! As tres irmãs olharam-se com tristeza ; mas o que pensaram não o disseram. Os lábios sorriram, houve uns suspiros mal disfarçados e um brilho de lagrimas, que pareceu molhar ao mesmo tempo os olhos de todas, sem rolar pela face de nenhu- irX'^:''^: 194 ANCIÃ BTBRNA ma... D. Lucinda rompeu o silencio. Viiiha por pouco tempo... o seu segundo marido, um argen- tino, morrera havia um anno; tinha ainda muita coisa a liquidar... O seu palacete não podia fícar abandonado em mãos dos perversos enteados... O seu palacete ! Como ella encheu a bocca, descre- vendo cm duas palavras o luxo das suas mobilias e da sua equipagem... Era conhecida e invejada na cidade toda ! D. Thereza pasmou : — Que ! pois as suas mobilias são melhores do que... — Estas?! Oh !Eriu-se com desdém. Thereza! você não imagina : isto é horrível ! Nós outras te- mos coisas modernas, vindas de Paris ! Meu ma- rido gastava todos os annos uma fortuna em qua- dros, em loiças, em cavallos e em roupas ! D. Thereza, pallida, com a cabecinha ainda mais tremula, olhou para a irmã Violeta. — E você? — Eu já não me importo com luxos... meus netos acabam com tudo! A não ser á missa, não vou a parte nenhuma... O que eu quero é ter muito espaço para as creanças e uma capella bonita. Em minha casa celebra-se sempre, com alguma pompa, o mez de Maria... E* o nosso systema. — Eu não conheço, modéstia á parte, casa mais completa do que a minha ! impou D. Lucinda. — Nem eu casa mais alegre do que a minha. AS TRÊS IRMÃS 195 Se saio, volto logo com saudades... murmurou D. Violeta. D. Thereza disse, já um tanto envergonhada por tratar as irmãs por você, em um tom cerimo- nioso e encolhido : — Pois eu mandei pedira... vocês... que vies- sem tomar conU\ das mobiiias e da casa, julgando que lhes fosse agradável... — Vamos vèr! interrompeu D. Lucinda, er- guendo-se com difficuldade bem disfarçada. Emilia amparou D. Thereza e seguiram todas cm pere- grinação. D. Lucinda apalpava tudo e ia murmu- rando : — Esta mobilia tem o estofo podre... Olhem! e esgarçava com a unha o damasco das pol- tronas. — Está mesmo... affirmava D. Violeta. Assim tudo : este canapé é medonho; eu não o quereria nem na minha cozinha! Meu Deus! esta sala de jantar parece-me um refeitório de convento... E dizer que antigamente a gente achava isto bonito... D. Violeta sorria ; D. Thereza não chorava por vergonha, com respeito ás irmãs, que vinham mais fortes, com outros hábitos e outros gostos, cada qual educada por um marido, com o espirito influenciado pelo espirito d'elles ; uma adorando o luxo, a outra a familia e a egreja. Era bem certo, o casamento e a distancia roubaram-lhe as irmãs para sempre; a Lucinda e a Violeta de ou- 196 ANCIÃ BTBRNA tr*ora estavam enterradas em algum cemitério de virgens; aquellas duas velhas de génios op- postos... não eram ellas ! A* noite, D. Thereza, oppressa pela asthma, mo SC quiz recolher cedo ao seu quarto. Emilia foi dizer-lhe com accento irónico : — I). Lucinda mandou tirar do quarto d*ella a gaiolinha. Dizque não pôde supportar barulhos... que o som no da manhã é o melhor ! Ao mesmo tempo apparecia D. Violeta com as flores na mão : — Isto não pode estar lá no quarto... As flo- rei devem ficar nos jardins... Lá em casa é o meu svstema. IA em casa ! pensou D. Theresa ; lá em casa ! afinal cada uma ama o que é seu, pensa no queé seu ! Eu, só eu, amo esta casa, não porque seja minha, mas porque era nossa... Serei melhor do que ellas? De onde me vém esta ternura e esta saudade que ellas não sentem? D. Thereza chorou na penumbra da sala. No dia seguinte mandou recolher ao quarto dos badulaques, no fundo do quintal, os trastes mais antigos e de maior estimação. As irmãs zombavam de tudo... pois bem! deixaria escripto que se fizesse com elles uma fogueira no dia do seu en- terro. Mas não escreveu, e dois dias depois, á hora do almoço, morreu sentada na sua cadeira de couro, com as mãos sumidas no chalé e a cabe- cinha pendida para o peito. AS TRÊS IRMÃS 197 D. Violeta recolheu as imagens do oratório, como lembrança piedosa ; D. Lucinda, nada. Ven- deram a casa, repartiram os bens... e foi cada uma para o seu destino. ^^t rjaaftÊBOfiJf* . o YEO (das memorias de um estudante) ... nas ferias d'esse mesmo anno, decidi visitar a familia, meu pae e duas irmãs, na pequena villa do meu nascimento, em S. Paulo. Revoltado pela injusti(,^a dos lentes, que me re- provaram no meu quarto anno de medicina, re- solvi ir para o matto escrever em socego contra elles. A vingança seria tremenda. Parti num dia de muito calor; ia indisposto e somnolento. Dando um puxão ao meu bonnet para os olhos, dispunha-me a adormecer quando vi sentarem-se na minha frente duas senhoras. Uma era alta, a outra baixa ; uma esbelta, a outra atarracada. A baixa levava sobre o vestido de merino preto um guarda-pó de linho com reversos de côr, cha- péu de palha havana e luvas de meia pardas. Era mulher de uns quarenta e poucos annos, morena, luzidia e de lunetas de aro : typo vulgar, burguez. >>^ -r •- - - . :ryr*r.r*- ^-^ntí •V'?? « 200 ANCIÃ BTBRNA A esbelta trajava com elegância um vestido sim- ples de riscadinho cinzento, sem folhos nem fitas, guarnecido de pospontos, com um casaco justo que lhe denunciava a formosa linha do corpo, e um collarinho & in^leza, muito unido ao pescoço. Cha- péu do mesmo tom, que pan*('ei'ia mais um chaprii de homem se não liie tivessem pespegado na frente uma grande ave de azas abertas. Desço a estas minudencias de toilette porque ellas constituiram logo para mim um ponto de es- tudo. A maneira de vestir indica fatalmente a ma- neira de pensar de uma mulher. E entre aquellas duas... queabysmo! que extraordinária differen- ça ! Era caso realmente para meditação. Eu obser- vava ora uma, ora outra. As luvas de meia de algodão pardas da baixa faziam-me adivinhar mãos curtas, grossas, ágeis, afTeitas á vassoura, á agulha, calejadas da tesoura, marcadas por queim.aduras de calda ou agua a fer- ver; as luvas de pellica da alta, justas e bem abo- toadas, faziam-me sonhar com umas finas mãos muito macias e brancas, acostumadas a correr pelo teclado de um piano de Erard, a folhear os livros de Bourget, ou dos Goncourt, e a acariciar um an- gora de preço, no aconchego tépido de um divan de seda. Os sapatos de entrada baixa da gorda, mostrando-lhe as meias cruas engelhadas nos tor- nozellos grossos, faziam declarações terrivelmente indiscretas: que aquelles pés tinham callos e unhas encravadas, que se punham assim á vontade pela o vÉo 201 obrigação de longas caminhadas enfadonhas e can- sativas. As botinas de pellica da outra, lustrosas e estreitas, diziam o contrario. Estavam alli den- tro pés mimosos, assetinados, habituados á valsa e á fabrica Ferrv. Na larga cara da morena, húmida de suor e sal- picada do carvão da machina, li como num livro aberto : actividade, despretenção, pouca intelligen- cia e uma pontazinha de génio. Na cara da com- panheira é que não pude ler nada ! levava-a enco- berta por um largo véo claro, que passava e repas- sava em torno da cabeça, escondendo-lhe total- mente as feições. Era clara, loira, trigueira, rosada ou pallida? Não o podia eu então saber. Devia ser loira, que c o typo requintadamente aristocrático. Aquella singularidade mesmo de um véo tão expesso, coisa perfeitamente explicável numa viagem em trem de ferro em tempo de secca e de pó, contribuiu para tornar mais curiosa e in- teressante a figura patrícia d aquella senhora. Eu estudava-a e, á proporção que a estudava, ia-me apaixonando ! Ah ! não se riam ! Que diabo ha de fazer um rapaz de dezenove annos durante um dia inteiro de viagem, quando o acaso lhe atira para deante dos olhos uma estampa tão seductora? Apaixonei*me, sim ; mas não foi também tão su- bitamente como á primeira vista pôde parecer! Fui-me apaixonando minuto a minuto, lentamente, primeiro pelos pezinhos, depois pelas mãos, depois > • » • *• 202 ANCIÃ BTBRNA pela distincção do porte, e finalmente pelo rosto que eu não via, o que não obstava a que o sou- besse de uma brancura de leite e rosas, ílluminado por um par de olhos rasgados, húmidos, promet- tedores de ineíTaveis doçuras. E, assim como eu percebera o caracter da outra pela cara, percebi, pelo ooiijuncto gracioso d*esta, o seu génio tam- bém. Era recatada, timida, honesta, altiva, indo- lente — tanto quanto o exigisse a sua alta posição na sociedade, — rica e solteira. Encobria-se assim (e já eu fazia as minhas conjecturas!) porque, via- jando sem o pae, acanhava-se de se dará conhecer a toda a gente, evitando commentarios ; uma pru- dência louvável. Seria casada? Também podia ser; o papel de pae identificava-se com o de marido, sem que por isso o d'ella soffresse alterações : irmã ou filha da outra é que não era ; isso jurava eu. O meu olhar fixava-se por tal forma na sua gen- tilissima figura, que ella principiava a inquietar-se. « Sou um grosseiro », dizia eu de mim para mim; mas não conseguia desviar a vista. Alii mesmo formei logo tenção de escrever um livro a que poria o titulo : — as mulheres ; livro exquisito, original, farfalhante como as sedas de Lyon. Era essa desconhecida quem me suscitava tão boa idéa. Abençoada fosse ella! Propunha-me (julgava-me habilitado para isso) a descrever os caracteres das mulheres que eu d'ahi por deante encontrasse, só pífias suas manifestações exterio- res. Na missa, no baile, em casa, no theatro, na :,^-- >^;-7'>^ O vÉo 203 maneira de ajoelhar, de abrir o livro, de dançar, de mover o leque, de receber uma visita ou de as- sistir a um drama, julgava eu, ainda inexperiente das suas dissimulações, que as poderia definir clara e positivamente, estampando-as depois com todos os cambiantes nas paginas do meu volume. Seria dedicado o meu trabalho á bella e mysteriosa com- panheira de viagem, de quem então eu já deveria saber o nome. O nome ! Como se chamaria ella? E andei á pro- cura de um nome de mulher loira: Laura... Ma- thilde... Alice... Lúcia... Aurora! Enti^etanto, chegámos a S. Paulo. Anoitecia; os lampeòes de gaz espalhavam pontinhos de ouro pela cidade. Acabava-se o meu romance tristemen- te... não me podia resignar a isso. E, apanhando á pressa a minha mala, acompanhei as duas senho- ras atravéz da gare. Um sujeito approximou-se d'ellas, e curvando- se deante da mais alta, recebeu algumas ordens, rapidamente, depois acompanhou-as á rua, abriu a portinhola de um carro particular e voltou. Elias partiram, e eu, numa resolução digna dos meus dezenove annos, acompanhei-as noutro carro, até vél-as entrar numa casa apalaçada, ao lado de um jardim. A minha villa que me perdoe, e que me perdoe a minha familia e que se regosigem os meus lentes ameaçados! esqueci-os e instalei-me por largos dias no Grande Hotel ! As manhãs e as tardes gas- ^•^. —»—*-- ' : - r -."ÍJJ**. • • • • 204 ANCIÃ BTBRNA tava-as ou em passeio deante d*aquella grande casa sempre fechada, mysteriosa como o véo, aris- tocrática como a dama. Por fim, num desespero de namorado infeliz, encostava-me á grade e ficava horas esquecidas olhando para dentro, sem medo de me tornar suspeito para a criadagem ou para a polícia, a ver cahir lentamente, como lagrimas de sangue, as pétalas carnudas das camélias verme- lhas. Tanto maior era a obstinação d*aquella se- nhora em se não mostrar, quanto mais vehemente era o meu desejo de a ver. Passados não sei quan- tos dias, lobriguei numa manhã a companheira de viagem, a gorda, a sacudir um tapete numa ja- nella; cumprimentei-a, sorri-me, fiquei atrapalha- do, com vontade de perguntar alguma coisa, mas evitando praticar semelhante asneira. Ella com- prehendeu-me de certo, porque teve a amabilidade de convidar-me para descançar. — A senhora baroneza ainda está recolhida, disse com melicia; mas isso não o priva de entrar e tomar uma canequinha de café. Recusei e segui. Para encurtar razões : escrevi um dia á baroneza, e mandei-lhe a carta. Nessa tarde recebi um car- tão d*ella consentindo que eu lhe fosse beijar a mão. Entrei na sua casa transportado de jubilo e já com o prologo do meu livro feito para lhe mostrar... Nessa parte da minha obra, escripta em noites de febre um tanto romanesca, puzera eu, entre muitog lí-**»"^!»'^^ > ■ ► » ■-'.■^ - • - ^- ' é ; íTi'» '.ç *• O vÉo 205 adjectivos e phrases modernas perfeitamente des- conncxas, num estylo á la diable^ toda a minha alma e aspiração de gloria ! Tinha antitheses medonhas, quadros terríveis em que a duvida se divertia a queimar um pobre coração, revolvondo-o nas chammas de um amur intensíssimo! E por sobre isso tudo, uns salpicos de opopouaXy que era o aroma em voga, e uns sonhos ídeaes, cheios de coisas mansas e doces melanchol ias , com que eu contava apossar-me do coração da bella baroneza. E era só imaírinar o brilho dos seus olhos lan- guidos quando me dissesse enthusiasmada e feliz: — Como é bello ! Fizeram-me esperar numa sala, em que occupava a principal parede um barbaças condecorado. Es- tava alli havia uns bons dez minutos quando um criado veio dizer-me que a senhora baroneza roga- va-me o obsequio de ir ter com ella a uma outra sala. Fui. Estava de pé e veio receber-me sorrindo com tristeza, c talvez também com um pouco de iro- nia... Ai de mim ! por que tirara ella o longo véo pie- doso?! Era velha, a baroneza, velha e feia; mas bem velha e bem feia ! Fiquei attonito, tendo a estupidez de deixar transparecer na physionomia a minha amarga de- cepção; e ella, para vingar-se d'aquelle imperdoa- 12 V 206 ANCIÃ ETERNA vel movimento, deixou-me logo cahír no ouvido estas palavras agudas como punhaes: — Meu menino, nao se cance jamais em seguir as mulheres... que usarem véos muito espessos ! PELA PÁTRIA Os tiros lá fora repetiam-se, tremendos e aba- ladores. D. Catliarína, muito lívida, segurava com os dedos magros, de encontro ao peito fundo e concavo, o seu triste chalé de viuva, escutando sozinha a agonia do coração... Morava em Nicthe- roy, num bairro afastado, e na sua pequena sala térrea, de uma nudez de asceterio, o seu corpo magro e esguio, todo coberto de preto, andava desnorteadamente, como um mastro sem velas batido na borrasca. Corria assim de canto a canto, de parede a pa- rede, dejanellaa janella, sem parar, sem perce- ber senão que os seus dois rapazes lá estavam na guerra, o mais velho no exercito, o mais novo na esquadra... A luz pallida do crepúsculo desfazia-se aos pou- cos. .Coisas e seres retrahiam-se num silencio expectante. O troar da artilharia calava todas as outras vozes ; nos intervallos cabia sobre a terra uma mudez pesada e absoluta ; mas o estampido vinha * é-- ifí^^V-m^^^',!^. 208 ANriA ETERNA depressa fazer vibrar a natureza inteira. E o ar ficava por momentos tremulo, como que dolorido pela passagem d*aquelle som formidável e assas- sino. D. Catharina tinha exgottado todo o fervor reli- giosa) (la sua alma. A prece já lhe sahia dos laliius frios como um débil perfume de flor murcha. Perdera as forças na anciedade e no pranto ; o coraeão não lhe distilava a agua purificada da la- grima, que escorrera toda, deixando só no fundo os residuos de sangue negro e envenenado, gera- dores da raiva. D. Catharina odiava a terrd em que nascera e que lhe roubava agora os filhos, e execrava ainda mais os homens e a lei e tudo ! Era ignorante, embora intelligente e imaginosa ; e na curta parábola em que o seu espirito se aba- lançava, não podia attingir esses preceitos divi- nos, que se escrevem com sangue e que os ho- mens lém corrente na sua alta sabedoria... A honra ? O brio da nação ? Palavras ! EUa não sabia senão que amava os filhos, que os tinha criado com terno apego e grande sacrificifi, pe- dindo honestamente e humildemente ao Senhor Deus dos exércitos, que fizera as estrellas do céo, as aguas dos rios, os cedros altivos e as areias do mar, que, na sua força prodigiosa, de tantas maravilhas lhe concedesse a simplíssima graça de a fazer morrer bem velhinha, deixando neste mundo os seus dois filhos... os seus dois únicos filhos ! - -/r- .■'<.■ PELA PÁTRIA 209 Tinha cabido a noite. D. Gatharina procurou reagir. Âccendeu a lâmpada, compoz na alcova próxima as roupas e as camas dos seus rapazes. Para que? Elles não viriam... mas era um ha- bito, e ella obedecia com submissão a todos os seus velhos costumes. Ergueu depois a vela á altura dos retratos d'el- les, que se destacavam na parede caiada, em dois quadrinhos moldurados de velludo escuro. O mais velho era um soldado garboso, claro e bonito como o pae, de olhos rasgados e peito franco e largo. O outro, ainda muito novo, puxara ao typo da mãe: era magro, trigueiro, de rosto comprido e lábios sympathicos. D. Gatharina beijou ambos com egual ternura, confundindo-os no mesmo enleio e no mesmo cuidado. Voltou depois para a saleta, abrindo os ouvidos aos rumores de fora... Que extranho rumor seria agora aquelle que percebia ao longe, no ar immovel da noite? Fin- cou o olhar na treva. Ninguém ! A estrada devia estar deserta. Tornou a entrar e foi sentar-se a um canto, com os cotovellos pontudos firmados nos joelhos e o rosto sumido entre as mãos. Ca- hira por fim numa atonia que lhe amolentava o espirito e petrificava o corpo ; nem um leve estre- mecimento lhe agitava os músculos. Permaneceu por longas horas em egual postura, olhando para o mesmo ponto. 12. Jie. -•- '^ VJVy 210 > ANCIÃ BTBRNA A pouco e pouco idéas desencontradas foram nascendo e fugindo simultaneamente no seu cére- bro de devota extincta. Deus e o diabo surgiam junctos na mesma luz indecisa que se esbatia em sombras, que mudava e que desapparecia. Santa Catharina, sua patrona, a virgem douta, vinha lambem, na sua nudez pallida de martjTisada, atravessar-Ihe a mente num clarão frouxo e frio. E depois outros santos, e grandes heresias, pro- cissões phantasticas, mal definidas, indetermina- das, arrastavam-se lentamente, mudando de feitio e mudando de còr, esphacelando-se, extinguin- do-se... D. Catharina permanecia surda a todas as bu- lhas exteriores, numa abstracção de louca. O ru- mor recrudescera, recrudescera e avisinhava-se. Os estalidos da fuzilaria crepitavam já perto. De vez em quando ribombava o canhão, atroador, medonho. O solo e as casas tremiam então, abalados pelo estampido que o echo repetia em ondulações solu- çadas. O clamor da guerra abafava tudo, terrivel- mente, dolorosamente I Entretanto, alguém vinha pela rua solitária, batendo a calçada com passos apressados. D. Ca- tharina, prostradissima, continuava em egual pos- tura, olhando para o mesmo ponto... Bateram; ella então, acordando d'aquelle marasmo de exte- nuada, ergueu-se de chofre e correu para a porta. PELA PÁTRIA 211 O coração saltava-lhe em ímpetos violentos, suf- focadores. — Meu filho ! Era o João, o mais velho, o soldado. A mãe extendeu-lhe os braços, sorrindo, enlevada, numa grande ventura. Elle não respondeu ao afago; e pallido, abstracto, sem ter nem mesmo levado a mão respeitosamente ao bonet, foi direito á mesa e apoiou-se nella, deixando-se cahir numa ca- deira. — Como você vem sujo de pólvora e como está cançado ! 5Ieu adorado filho, que medo que eu tinha ! Agora fico pensando no outro... o meu Pedrinho... você sabe d'elle? João voltou-se para à mãe com ar espantado. — Diga, você viu seu irmão ? O soldado não respondeu ; fixava a mãe com olhar parvo, muito aberto, como se não compre- hendesse o que ella lhe dizia. Vinha fugido, com a farda rasgada, aberta no peito, as mãos negras de pólvora, o rosto transtornado. D. Catharina apavorou-se. Estaria doido, o João? Ameigando a voz ella pediu-lhe que repousasse e oíTereceu-lhe de comer. Que não ; respondeu elle com um gesto. — Então... O espirito da mãe clareou-sc de repente : o filho vinha só para dizer-lhe : vivo ! E, já com medo de tornar a perdel-o, instou para que fosse des— cançar. v< 212 ANCIÃ ETBRXA — Não posso... venho fugido. D. Catharina relanceou a vista por toda a sala, procurando esconder o filho, receiosa de que o vissem de fora. — Não quero esconder-me, tornou elle, perce- bcndo-Ihe a intenção; cu volto para lá... Elles conseguiram vir a terra... temos luctado muito! — Os revoltosos desembarcaram ? ! — Sim. — Então você viu Pedrinho ? João abaixou afíirmativamente a cabeça. — Nossa Senhora ! por que c que o não trouxe? O soldado calou-se, suspirando baixo. A mãe repetia as perguntas, atropeladamente : — Diga ! diga ! elle fallou com você? está bom? não o feriram ? Meu filho ! que saudade ! Elle é tão fraco... é preciso que elle venha; quero os dois aqui, vá buscal-o... Não, não ! eu nem sei o que digo... Espere... vou eu ! De repente D. Catharina estacou deante do rosto mudo e pallido do filho. Parou-lhe o coração no peito. — Porque é que você não diz nada ? O mesmo silencio contrafeito. — Responde, João ! Pedrinho está vivo ? ! A palavra custava a romper por entre os lábios do soldado, e foi ainda com um aceno de cabeça que elle disse que não. D. Catharina cahiu de joelhos com as mãos junctas. PELA PÁTRIA 213 — Misericórdia ! misericórdia ! mataram meu filho ! Depois, erguendo-se, exigiu do outro que lhe dissesse tudo, e instava : — Quem foi que o matou ? você não viu ? por- :iue não defendeu seu irmão? Diga, quem foi que o matou, diga, diga ! João olhou para a espada, que lhe pendia do lado batendo-lhe na perna. A mãe não entendeu e repetiu : — Meu adorado Pedrinho ! mas você não falia, João ! Diga quem foi que o matou, diga tudo ! — Fui eu... D. Catharina recuou espavorida ; depois, avan- í;ando para o filho, bateu-lhe no peito, bem sobre o coração e bateu-lhe na cara, muitas vezes e com muita força. Toda ella vibrava na convulsão do desespero, e a voz que a dor tinha desafinado e enrouquecido, uivava e rugia a um tempo, como um cão que se lamenta ou uma fera que ataca. — Maldicto ! matar seu irmão ! você, que mam- mou nos mesmos peitos, sahiu do mesmo ventre, nasceu do mesmo amor ! amaldiçoado... Caim ! D. Catharina esmurrava o próprio corpo, á pro- porção que fallava ; e o filho ouvia-a calado, tre- mulo. A mãe teimava por arrancar-lhe uma pala- vra ao menos e repetiu num desespero : — Diga tudo, maldicto. Porque foi que você o matou, porque? — Pela pátria ! ^ -^ " «'W"'^W*V9I<^^^^^HHP5K7« t*''t'^'i' 214* AKCIA BTBRNA — Pela pátria ! repetiu ella, rindo, raivosa- mente. A pátria sou eu ! Eu que sofTri, e que só vivia do vosso amor I Isto não é guerra por amor da pátria : eu sei o que dizem por ahi. Eu sei ! Infame, maldicto... some-teda minha vista, Caim ! Caim ! D. Catharina cahíu sem um soluço. João levan- tou-a, fcl-a voltar a si e, de joelhos, chorosamen- te, contou-lhe tudo. Matara o irmão na treva, na desordem da lucta, corpo a corpo. Porque viera u Pedro para elle com tanta fúria e arreganho? Ma- tara quem o queria matar, defendera-se... porque, jurava, só conhecera a voz do irmão ao ouvir-lhe o ai derradeiro. Foi então que procurando fixal-o, viu-o deitado de costas, com os braços abertos e o peito estreito arquejando no desprender da vida. 1). Catharina repetiu : — Amaldiçoado ! João concluiu : viera despedír-se da mãe, pedir- lhe que lhe perdoasse... Mais nada. Voltava para o combate. A mãe não procurou retel-o, e elle sahiu cho- rando. O soldado não voltou á casa materna... D. Catharina começou a perdoar-lhe quando teve medo de perdel-o. Um dia, já muito sobresaltada, sahiu para ir buscal-o, num alvoroço, sem saber como pergun- tar por elle ; mas logo no meio da estrada esbar- • r* - 'T^- PELA PÁTRIA 215 rou com uns soldados que lhe disseram cruamente a verdade : o João tinha sido baleado e fora levado com outros, num montão de cadáveres. O dia estava sombrio, uma manhã cinzenta e chu viscosa. Os soldados passaram. D. Catharina ficou immovcl, com os olhos na onda verde que vinha desfazer-se na escumilha fuía da espuma, á beira do caminho silencioso. EUa tinlia-o amaldi<;oado... lembra va-se só d'a- quillo. O João estava decidido a morrer... fôra- Ihe solicitar o perdão e só tinha ouvido em troca as palavras : — Maldicto ! Caim ! O vento agitava-lhe o chalé preto, que se abria em azas de corvo, e D. Catharina, alongando a vista, julgou ver ao longe os espectros dos filhos, com os braços hirtos, muito erguidos para o céo inclemente e as boccas articulando sem voz, num esforço medonho : — Pela pátria ! Pela pátria ! Batendo então com as mãos fechadas no peito fundo, D. Catharina, noseuegoismo materno, res- pondeu-lhes, .gritando em arrancos de louca : — Calae-vos, ingratos ! A pátria sou eu ! sou eu ! sou eu ! • ■. I • T^IV. i:- O DR. BERMUDES A RAY MUNDO COUULA Hão dc crer? Encontrei esta manhã o Dr. Her- niudes, aqiicUo vollio bohcmio incorrigível, com o seu legendário casacão rueo, as botas cambadas, o collarinho sujo, e o seu ar de fome, olhando pasmado para uma vitrine de bonecos ! Quem não sabe da chronica do Dr. Bermudes? Conhece-a o Rio de Janeiro em peso, desde os lentes da academia, de quem elle fora condiscí- pulo, alé aos caixeiros dos botequins que o levam para o relento das cal(;adas, a horas mortas da noite, quando as estrellas brilham no céo sobre os telhados mudos da aisaria adormecida. O Bermudes esta velho, tem perto dc cincoenta annos, e a ventania da desgraça poz-lhe na pcUe tons de cobre sujo, e manchas de neve naquellas barbas, que mais parecem hervas hirsutas dc uma brenha. Credo! Quem dirá que aquillo já foi moço, galante, garboso, rico, correndo ás aventuras arriscadas, 13 ..T ^J 218 ANCIÃ CTERNA sempre bem vestido e bem fallante, enamorando as mulheres com a do(;ura dos seus olhos, e o espirito dos homens com a faísca das suas pala- vras ardentes e bombásticas? A sua passagem deixou rastro na academia ; ciíaiu-so ainda phrasos suas o feitos de arreganho em que entrou sempre uma alevantada idéa de juslica. Trazia capa e espada na alma, já que os li.Mupos burguczcs não Ufas permittiam no corpo. O Bermudes era um D. Quixote, mas novo, bonito, com uma voz que arrastava a gente, e cada gesto, cada idéa, de (piem tudo domina e nada teme. Eu conhcci-o ainda nos bons tempos da D. Ja- cinlha,a tia velha, que lhe dava dinheiro e o man- tinha naquellas doidicos da mocidade, com o brilho que a sua imaginat^ão requeria. E elle aproveitava. Só fumava do bom, comia como um principe, e das suas màos finas as esmo- las caliiam, como chuvas de verão, no regaço dos pobres. Sujeita, como tudo, ás leis da natureza, a D. Jacintha foi muito quietinha para o cemitério, numa formosa tarde de inverno, d*essas de nuvens de oiro e de roseiras em flor. Pela escadaria de pedra do jardim, quantas abas negras de sobrecasacas fluctuaram, a caminho das reverencias ao Dr. Bermudes, o bello Bermudes, único herdeiro d*aquella velha míllionaria? E elle lá estava, na capella ardente, pallido, com a face compungida e as lagrimas luzindo-lhe nas pupil- o DR. BBRMUDES 219 las. Era só então : « Sr. Dr. Bermudes ! » — € Sr. Dr. Bermudes ! » Muito respeito, muita piedade e grandes condo- lências... Lá de um cantinho, c tabcUião Taveira, com a papada de porco untando de suor o colla- rinho o o peitilho da camisa, sorria por dentro, no mysterio do seu officio, d'aquelles dizeres de tantissimas bocais. Elle lera ao Bermudes, horas antes, o testamento da tia. A idiota não deixara nem um vintém ao sobrinho ; ia toda a fortuna para a sua irmandade de S. Francisco. K o Ber- mudes nem estremecera. Era como sii fosse tudo muito natural. Acabada a leitura, elle ergueu-se e dirigiu-se para o catafalco. O tabelliào e as testemunhas pu- laram, julgando que no rostinho mirrado do ca- dáver cahisse vingativa e irrespeitosamentea mão do Bermudes. Não; elle fora sacudir as moscas, que faziam por entrar na bocc;i de onde só orações tinham sahido havia longos annos. E ninguém mais fallou em tal. A velha, que o acostumara aos regalos de uma vida de lu.vo e dissipação, deixou-o sozinho na miséria. E só o seu confessor sabia as razoes d^isso.. . Bermudes ficou sem ter onde dormir, nem onde comer, gyrando por essas ruas, alegre com uns, condoído de outros, sem rancores, acceitando o jantar de um amigo, o leito de outro, coisas de empréstimo, que foram rareando pouco a pouco, até que se acabaram de todo... 220 ANCIÃ ETERNA Elle deixou assim de ser o homem de sala para ser o typo da rua. AfTez-se ás más companliias e ao máo vinho. E quando bebia sonhava que a tia Jacintha voltara da viagem e que tinha outra vez o seu grande leito de docel com sanefas de pur- pura, e o sou tliocolalo qii»MUe com pão-de-Iot, trazido pelo criado, o mulato Candínho, antes do banho, nas suas manhãs preguiçosas. Quando o Bermudes accordava da bebedeira, via que o colchão não era o seu amigo, de paina de seda, desfíada pelas crioulas da casa, mas sim o lagedo da rua immunda. A decepção abria-lhe vontade de beber outra vez, e elle bebia para sonhar com os regalos fornecidos pela defuncta velhota. Ainda ha senhoras porahique bem se lembram de ter valsado com elle, o que era um prazer deli- cado. De uma sei cu que, quando o vé, volta o rosto e sente estragado todo o prazer do seu passeio. Embora a filha lhe pergunte : — Mamãe, por que ficou triste? — Ella não lhe responde e vae andan- do... Vae andando com a idéa presa á lembrança de outros tempos, quando o Bermudes, moço, rico, estimado, ia vel-a todas as tiu^des, chamando-a — minha noiva, mesmo nas bochechas do papae e da mamãe... E d'aquella voz do Bermudes nunca ella se esquecera, nem depois, quando outro ho- mem lhe deu o mesmo titulo, na mesma casa, ao lado das mesmas pessoas ! Ella também já tem os cabellos brancos, mas, porque érica, como cheiram bem 08 seus vestidos de seda e os seus mante- o DR. DERMUDES 221 letcs á moda I O marido nunca lhe soube dizer que a amava, como o Bermudes, que lhe plantara na alma um carneirinho de flores odorantes ; mas que luxo lhe dava, santo Deus ! O Bermudos ó que a niío conhece; esqueceu-a, pcrdoando-Ihe assim generosamente... e por ahi anda com o seu casacâo roto, e os seus passos trô- pegos, em que entra já o tremor do alcoolismo... Um dos seus divertimentos, ora vejam ! é ir postar-se em frente as vitrines de bonecos, com uma attenção que nada abala. Sorri para as pasto- rinhas de avental e chapéo de palha, para osclonms, para os velhos do Natal, para os bebés das caixas armadas a rendas e setins, para os velhos sapa- teiros batedores de sola e para as carrocinhas tiradas por um burrinho gordo. A gente da loja já o quiz enxotar, dizendo que elle afugentava a freguezia. Entretanto, Bermudes sorri cora as creanças que passam, porque, como as creanças, elle sempre amou a ficção. E ha de amal-a, até que um dia... Vão vêr que a tarde em que o levarem para a sua ultima cama, não ha de ser tão bonita como aquella em que levaram a velha tia Jacintha! \ V, , . » . y >• ^>i. --t»-. -ry* A VALSA DA FOME Quando o pianista Hippolyto entrou na sala, houve um sussurro de contentamento. Era preciso romper aquella monotonia, as moças estavam mortas por dançar. Dentro de uma velha casaca ensebada, com o pescoço hirto e as grandes mãos balançantes, elle dirigia-se para o piano a largos passos, com as narinas dilatadas e o queixo muito agudo, cor- tando o caminlio como uma proa de navio virada para o porto desejado. Houve quem risse; elle era tão magro, ia tão amarello e com tão viva chamma nos olhinhos pretos, que uma senhora, uma d'essas senhoras espirituosas e amigas de fazer comparações, per- guntou a um amigo : — Quem teria tido o exquisito gosto de vestir de homem aquella tocha funerária? Logo o interrogado, rapaz gordo, mettido a litterato, com o peito florido por uma gardénia immaculada, respondeu : — A fome. Feia fome que lhe envergou aquella 22i ANCIÃ ETERNA casaca pre-historica e lhe amarrou ao pescoço, com verdadeira gana de o enforcar, aquella gravata branca. Só ella, a maligna, o faria entrar neste salão burguez para divertiras moças. Porque, fique sabendo a minha senhora e amiga, aquillo que está alli é um artista. A fome tem muita força para trazer um animal d'aquelles, todo nervos, para um logar d'estes. Só pelo freio ! — Oh! — Nâo se escandalize erepare-lhe para a noilo sidade dos dedos. Valentes, formidáveis, não? Pois vae ver : roçam pelo teclado como uma ponta de aza pela superfície de um lago. Hão de me agradecer o tcl-o trazido cá... — Ah, foi o senhor... — Fui eu; por um acaso... Imagine que fui hontem encarregado de contractar o pianista pai*a a festa, e que só hoje, á ultima hora, me lembrei da incumbência ! — Sempre o mesmo! Aquelle senhor então, veio remediar uma falta... — E preencher uma lacuna. Com duas palavras vou fazel-a interessar-se porelle. Tinham-me dicto que o Hyppolyto, chama-se Hippoljto, vendera o piano ha cerca de uns seis mezes, para fazer o enterro á irmã, única pessoa da família que lhe restava ainda, e que morreu de penúria com outras complicações... Conheci-a, era um lirio; tonto este é de bronze como a outra era de crvstal. Ama- vam-se como nunca vi ; elle tocava-lhe as suas A VALSA DA FOME 225 composições e ella entendia-o, ia até ao fundo do seu pensamento, numa admirável intuição de arte, toda feliz, toda orgulhosa d^aquellc irmão. Atravez do seu corpo diaphano, como que se lhe via a alma illuminada e radiante. Era muito branquinha, muito branquinha... Puhro pequena! Desde que ella morreu sumiu-se o llippolyto. Naturalmente, por mais que elle nos divertisse e nos fizesse falta não o quizemos perturlíar na sua magua. Compre- hendo que para um homem não ha amor tão doce como o de uma irmã, nem que maior saudade possa deixar... Perdi assim de vista o meu maes- tro, alé que, deshahiiuado, não me tornei a lembrar d'elle, quando hoje, de repente, na occasião mesmo em que eu me esbaforia atraz de um pianista para a soirée da minha tia, encontrei-o cabisbaixo, contemplando as ruinas dos botins. Pareceu-me um santo; agarrei-o com a possivel veneração e fiz-lhe a minha supplica com tal ardor que elle accedeu tremulo, numa anciedade febril, titu- beando : — Ha seis mezes que não toco, desde que ella morreu... sabe? não tenho piano, não frequento casas de musica. Cavo a vida por outros modos... mas estou com saudades, muitas saudades ! Tinha a bocca secca, sonti-lhe o hálito ardente; convidei-o para toma»* um schop. — Não ; tenho medo, respondeu-me. Estou com fome. — Mais uma razão para ires tocar á casa da 13. 226 ANCIÃ ETERNA minha tia, respondi-Ihe. Lá matarás a fome a peru trufado e as saudades do piano num excellente Bechstein. Se nâo fosse tào tarde... Tens casaca? — Não tenho nada. — lia ahi unias casas que aluííam disso. Apres- sa te ; ás dez horas deve romper a primeira valsa e já sâo oito. Toma o dinheiro para a casaca ; come- rás hl em casa. Foi tudo o que eu disse, á pressa, pensando em ir preparar-me também. E ellearran- jou-se, nâo sei em que guarda-roupa, mas com uma brevidade que me espanta, visto que eu co- meçava a temer... Sim, com dinheiro no bolso, em vez da casaca elle tinha razoes de esfomeado para dar preferencia a um jantar de restaurant. Não lhe parece? — Parece. Vè-se que gosta mais de contentar a alma do que de satisfazer o estômago. — Artisca. Depois da primeira valsa vou fazel-o ceiar... Por Deus! adoro estas organisações ! — Tem um certo sabor, a sua historia ; mas agora diga-mecom franqueza, não receia que esse senhor heróico nos toque uma marcha fúnebre em vez de uma contradança? Olhe para elle! — E a senhora ri-se ! Hippolyto sentava-se. As abas da casaca pen- diam-Ihe murchas e amarrotadas, como duas azas de urubu doente. As suas mãos trigueiras, que o exercício do teclado desenvolvera, cahiram sobre o marfim do piano num gesto ávido, de posse. O A VALSA DA FOME 227 busto ossudo e longo arquejou-lhe num soluço abafado e duas làgrimazinhas ardentes subiram- lhe aos olhos áridos. Xinguem as viu ; todo dentro de si, elle escutava, maraviliiado, os sons que ia ferindo e que se seguiam em revoada, como um bando de aves libertadas de i'epente de uma clau- sura longa... Rolaram notas macias, num preludio que foi como que uma caricia por todas as teclas, e d'esse preludio nasceu uma valsa, ora rythmada cm gra- ves, ora desdobrada em harpejos que iam e vinham num movimento doasso da valsa, risos e ago- A VALSA DA FOME 229 nias, badaladas de sinos, phrases de loucos e sus- piros de amor? Na densa espiritualidade d'aquelle poema, sen- tia-se oíTegar uma anciã irrequieta, humana, de perfeição. O supplicio de a attingir, arrastava-se como um desejo eterno, sem esperança... Pallido, convulso, sem sentir a fome que o dilacerava, o pianista agitava-se, transfigurado, com os olhos lacrimosos e a fronte enluarada. Dos seus dedos, fortes como raízes nodifloras, desabrochavam cachos de modulações, e elle ver- gava-se todo, como se por vezes quizesse beijar o piano. Havia mais de uma hora que durava aquella valsa, e Hippolyto tocava sempre, exuberante, num alheamento mystico, de sonho. Tocava já sem as blandícias dos piimeiros compassos, já sem os esboços fugazes de motivos em successivo abandono, mas num esforço de victoria suprema, num desdobramento febril de sons que faziam do piano uma orchestra e da valsa uma marcha de triumpho. Levantaram-se todos, lívidos de espanto. A so- lemnidade d'aquella loucura, e a concepção de uma obra de arte e sua simultânea execução produziam em toda a gente o arrepio do goso e o silencio do pasmo. Arquejante, surprehen- dido pela magnificência da sua creação, Hip- polyto, desvairado, alterou o compasso, des- envolvendo um trecho de sonoridades amplas. •►*' '. 230 ANCIÃ ETERNA numa allegoria á Gloria, digna de uma cantata. Sem vér ninguém, elle recebia o influxo da admiração de todos. As luzes irradiavam como o sol, aatmosphera carregada de aromas entonteciam, e a fome extorcegava-lhe o estômago, fazendo-lhe escorrer pelas costas e os membros um suor de vertigem . Não podia mais, vinha o cançaço, os pulsos amolleciam-se-lhe, uma nuvem escura ia-lhe a pouco e pouco toldando a vista... Feliz, naquella reconquista, elle teimava, teimava, cada vez mais fraco, já inconsciente, com os dedos erradios no teclado, de que levantava agora uma revoada de sons allucinados e confusos. Reapparecia o rythmo da valsa arrastando harmonias desaccordes, nas- cidas ao acaso das mãos bambas... O auditório que o acclamara, começava a rir, ao principio baixinho, depois mais alto, mais alto, até á gargalhada franca e brutal, quando, repen- tinamente, se calou assustado. O rapaz da gardénia, com os olhas cheios de agua, correu a acudir a Híppolyto, que desmaiara sobre o piano. 1 y O FUTURO PRESIDENTE Uma... duas... três... quatro... c as horas fo- ram soando numa lentidão de relógio velho, até a decima pancada. Era noite; pela janellinha aberta, do sotâo, via- se ura pedaço do céo estrellado, enada mais. No interior, havia um lampeão de kerozene sobre uma mesa de pinho ; um armário sem vidros, com cortinas de chita ; cabides, machina de costura e uma ruma de caixas de papelão empilhadas num canto. Juncto á mesa uma mulher mal tractada, magra, de olheiras fundas e dedos callejados, curvava-se para deanle, pregando botões numa camisa para o Areenal. Ao pé d'ella, num berço de vime, dormia regala- damente um pequerrucho, gordo e trigueiro, com a cabeça enterrada na almofada e as mãozinhas papudas e abertas, espalmadas sobre a colcha ver- melha. Além do tiC'iac do relógio, só se ouviam os r » > ■ 232 ANCIÃ ETERNA estalidos da agulha e a respiração regular da creança. A màe de vez em quando tirava da costura o seu olhar caneado e deixava-o cahir sobre o fíllio. Os seus olhos verdes perdiam então pouco apouco a névoa de tristeza que os tornava sombrios, até irradiarem com a limpidez das esmeraldas sem jaca. O marido tardava; talvez passasse a noite toda fora, vigiando a linha dos bonds, com a sua lan- terna de cores, c cila aproveitaria o tempo paiii coser e adianlar serviço ; a vida c tào cara e elles ganhavam tão pouco... Pensando na difiiculdade de se sustentai^em, lombrava-se do bom tempo em que o marido era forte e activo ; agora o desgraçado tinha só uma perna e o juizo já não era como d'antes... emfim, ajudava-o ella; e d'ahi a alguns annos haveria mais alguém a auxilialos. Esse mais alguém continuava a dormir tran- quillamente, com as duas mãozinhas abertas sobre a colcha. Entretanto, a imaginação da mãe ia-lhe abrindo um caminho florido e largo atravéz do myste- rioso e impenetrável futuro. Com a costura cabida nos joelhos, a cabeça voltada para o berço, ella dizia mentalmente : — Elle ha de ser bom, ha de ser amado por toda a gente... haverá alegria nos olhos que o virem, e todas as mãos se extenderão para apertar o FUTURO PRESIDENTE 233 a sua mào honesta ! Meu filho ! Como cllc dorme! Como elle é bonito ! Hei de ensinal-o a sor caritativo... mas como? se nós somos tão pobres... Não faz mal, ha de se arranjar um meio de o fazer dar esmolas ! Será abençoado assim pelos infelizes! Coitadinho! chorou tanto hoje!... faltou-me o leite, talvez... com esta vida de trabalho, não admira! E tão manso que elle é ! pobre creanra!... Pobre... po- bre ! É preciso que elle seja rico, pai'a ter com- pleta a felicidade! Isso c que ha do sor mais dif- licil... e d'ahi, quem sabe? talvez não... O pensamento ficou-lhe suspenso nessa idéa ; com um suspiro de desalento voltou ã costura, e os seus olhos foram-se enturvando. Também o marido tinha tido grandes esperanças de fazer fortuna; também elle architectara castellos de oiro e crvstal, e deitara-se ao trabalho com amor e coragem; também elle era probo, e digno, e leal, e ahi estava agora quasi inutilisado, desde que a maldicta machina de um trem lhe esmigalhara uma perna, mudando-lhe o seu génio desembara- çado e viril, poraquella actual inércia, doentia e triste ! A que está sujeita a gente de trabalho rude! Ella que, desde pequena, se mostrava tímida, en- colhida pelos cantos, séria e franzina, era quem mais lidava e com maior animo, agora ! O seu esforço seria compensado? poderia levar ao fim a r/^ »•'•. • , .••t?C?";7' 23i AKCIA ETERNA criação do filho? Chegaria a vél-o homem, bem educiído, poderoso, feliz? Lcinbi*ava-S!^ de que, da ultima vez que tinha levado rou|)a ao Arsenal, ouvira num bond, entre dois sujeitos velhos e bem vestidos, uma con- versa que lhe causara impressão. Fallavani de pessoas de condição humilde, quasi despreziveis muitas vezes, mas cuja intelli- gencia, actividade e esforço conquistaram coisas estupendas no mundo das artes, no mundo da scicncia e no mundo da politica ! Alludiam enco- miasticamente a um rachador de lenha, que foi chefe de estado ; a um filho de um tanoeiro que chegou a marechal de França e a principe; a um tecelão, nascido num subterrâneo, que foi um grande botânico... e a outros assim. Essa gente toda era apontada na Historia pelo seu valor extraordinário, tendo alcançado, a par de grandes fortunas, o respeito universal ! Emquanto esperava que lhe recebessem o nu- mero, no Arsenal, ia repetindo de si para si a conversa dos velhos, a tal ponto que a chamaram de distrahida... Distrahida! O que ella estava era cogitando no futuro do filho ! Interrompeu de novo a costura, deu mais luz ao candieiro, dobrou umas camisolas já promptas, e recostou-se um pouco, descançando as costas que lhe doíam. O pequenito moveu-se; ella ar- ranjou-lhe a coberta delicadamente, para o náo ^x^-.-.-^tçíyr;- ,, V-.. «r O FUTURO PRESIDENTE 235 accordar, e poz-se a olhar para clle num êxtase. — lia de ser formoso, ha de ser amado ! vira um dia cm que o solicitem outros amores, em que a paixão de uma mulher o attraia a ponto de es- quecer-me! O sacrifício que cu faço, as dores que solTri, as fon^as que eu oxgotto amamentando )-o, tendo-o ao collo, perdendo com clle as noites, serão coisas ignoradas, ou de que elle nào faça senão uma idca incom[)leta ! Meu filho! como cu já tenho ciúmes d'essa outra que lhe ha de absor- ver toda a intensidade do seu alTecto ! Mas não; ella será toda meiguice e amor, ella ajudar-me-á a Kizel-o feliz!... Elle ê intelligente... elle terá mesmo um talento notável ! Será grande ; será respeitado... chegará aos cargos mais altos... meu filho! como elle é innocente! como elle é puro ! Qual será o meu orgulho ouvindo chamarem- n'o : « Senhor doutor ! » e vendo-o deputado, a fallar nas camarás, com muita nobreza e distinc- ção, correcto, sympathicoe justo! Depois... se isto chegara ser Republica, como andam a dizer por ahi, porque não será meu filho o presidente? Neste ponto os olhos da pobre mulher lampe- jaram de alegria; as suas grandes pupíllas ver- des tornavam-se verdadeiramente luminosas, atra- vessadas por uma alegria offuscante, como se a sua alma fosse um intenso foco de luz ! Presidente!... presidente!... Sim, elle será presidente ! Quando passar pelas ruas toda agente "••T^w^ 23G ANCIÃ BTERNA O cumprimentará; e os ministros, fardados e ve- ncíveis, curvar-se-ão deanted'elle como respeito devido a um superior, nos grandes salões de um palácio onde clle habite. Terá carros luxuosos, cavallos e criados... .\ sua voz abrir-se-ão as pri- sões, os hospitaes, os asylos, todos os edifícios onde a desgraça more ! Clemente, consolará os tristes, levando-lhes no seu conselho ou no seu pei'dâo a esperança e a ventura ! As mães atirarão flores a seus pés ; os moços saudal-o-ão alegre- mente e as creanças cantarão hymnos agrade- cendo a sua protecção, o seu amparo, a sua sym- pathia. A todos os recantos escuros descerá o seu olhar luminoso ! para cada chaga terá um bálsa- mo, para cada magua um consolo, para cada vicio uma rehabilitação ! A cadeira de velludoque lhe destinarem em todos os logares em que tenha de comparecer, qu^ír seja um logar de festa, quer seja um logar de dòr, serâ sempre cercada de flo- res, atiradas ahi pela multidão compacta do povo, que o proclamará, unanimemente, o melhor dos homens ! Sim ! meu filho será o melhor dos homens ! Triumphante, poderoso, altivo, bello, adorado, ha de levar-me pelo braço, a mim, velha, cança- da, tremula, e dirá á vista de toda a gente, sem se envergonhar da minha figura nem da minha ignorância : 4 « Es til é minha mãe ! » A costura do Arsenal cahira no chào; a visiona- r._-,v:;<..-,í-.,i.,- ■ - ■ . .■■■■?,••■.".•»', '.S--'^-. .-.:.; .... O FUTURO PRESIDENTE 237 ria mulher tinha lagrimas nas faces, lagrimas de jubilo que aquelles pensamentos lhe davam. Ner- vosa, hvstcriai, doente, deixarase emba ar de tal maneira pelas doiradas chimeras d'aquelle sonho irrealizável, que o julgava já exequível, certo. Voava poli) azul de sua phantasia, quando ou- viu na escada os passos irregulares do mando, batendo nos degráos com a sua perna de pau. Correu a abrir a porta. O homem entrou carrancudo, confessando logo, â queima roupa, estar sem emprego... Implicân- cias e queixas de um liscal... guardav-a as exph- ca.:ões para o outro dia; estava cançado. Deitou- sc e adormeceu. ii.„„,„ A esposa, arrefecida, gelada por semelhante noticia, voltou para a costura ; duphcana o seu esforço, faria serão até mais tarde, talvez toda a ""^^N^ entanto o relógio cançadoia batendo, uma . duas... três... quatro... até a dec.ma segunda pancada da meia noite ; e no bercinho de v.me dormia regalado o futuro presidente, com a cabe- ça enterrada na almofada e as mãozinhas papudas espalmadas sobre a colcha de cor. (1889) m >• * • í . !r t '-^rz o ULTIMO DISCURSO A COKLIIO \ETTO Dr. Paula Guedes, muito velhinho, sumido en- tre os almofadòes do seu grande leito d<í peroba, com os pés aquecidos por uma botija de agua quente, a camisola de llanella bem abotoada no pescoço, delgado e rugoso como um galhinho secco; as mãos mirradas sobre a colcha de là, a fronte já tocada de uns tons da amarellidão cada- vérica, os lábios murchos sob o musgo branco do bigode queimado, as pálpebras descabidas, mal ouviu a neta dizer-Ihe que havia alli um ofíicio dirigido a elle, sentiu logo um calorzinho cntrar- Ihe na alma fria. Ainda não o tinham esquecido!... E, com um fio de voz fragilissimo, reclamou logo : — Os meus óculos ! Postos os óculos, disse radiante : — É do Instituto ! E apalpava o papel grosso 240 ANCIA ETERNA onde o dístico d^aquella corporação apparecía em lettrinhas negras. A neta, em pc ao lado da cama, observava-Ihe com espanto a mudança da physíonomia. As pál- pebras até então fechadas numa somnolencia que parecia o ensaio para o grande somno, levanta- vam-se agora, deixando que das pupillas, ha pouco amortecidas, sahissem novos lampejos, como mosquinhas loiras bailando no ar. — Ilum... hum! é do Instituto... ainda não me esqueceram... sempre faço alguma falta... Todo o corpo do doente se movia sob a grande colcha felpuda, onde não faria menos volume o esqueleto de um menino de dez annos. A neta offereceu-se pai-a a leituia. — Não; depois ! espera... corre a cortina... a luz está má. — Assim ? — Assim. A leitura começada foi logo interrompida. — Hum !... hum !... abre a janella. — Vovô, vamos ter chuva ; ha tanta humidade que nem parece uma manhã de verão. — Não faz mal, abre a janella. — Mas... vovô! O Dr. Paula Guedes, que tomara na véspera os sacramentos, como bom catholico-apostolico-ro- mano, todo purificado pela absolvição, rompendo a inércia dos seus oitenta e três annos e d'aquelia - " * o ULTIMO DISCURSO 241 doença que o fazia tiritar de frio em pleno Feve- reiro, gritou em um falsete irado : — Abre a janella ! A janella abriu-se. A araucária e os pés de ca- mélia plantados perto de casa gottejavam orvalho; para alem nada se via : tudo era branco. — Aqui na Tijuoa estes nevoeiros de verão prognosticam dias formosos, disse o doutor com um sorriso, desdobrando o officio. Era um convite. Pediam-lhe que fosse ello o orador na grande solemnidade que o Instituto realizaria d'ahi a um mez em homenagem ao tri- centenário de Anchieta. Então é que o enxame das mosquinhas de oiro torvelinhou doidejante. Meu Deus ! o Instituto, o centro das grandes capacidades do paiz, dos no- mes mais respeitados e queridos do império e da republica, aquelle ninho de intelligencias perfei- tamente dirigidas, de ministros, conselheiros, niarechaes, historiadores, e grandes homens de lettras, precisava d'elle, do apoio da sua voz, do fulgor da sua illustração? Que honra, que doce consolo aquelle que lhe ia bater á porta nas ulti- mas horas da sua vida, exactamente quando elle curtia a amargura de pensar que tinham ha muito posto sobre o seu nome uma pedra ainda mais pesada do que a outra que botariam em breve so- bre o seu corpo ! Alvoroçado releu o officio, passou-o á neta, ouviu-o lèr de novo ; mandou chamar a familia 14 242 ANCIÃ ETBRNA inteira, commaniooa-lhe o successo, com ar reju- venescido, contente. Elle faria por acceder ao convite ! Oppuztiram-se todos. Seria a sua ruina; que dormisse descançado, sem atormentar a ímagi- narno. Que se lembrasse dos auisttlhos do medico... e que mais isto equc mais aquillo... Faltassem pr'alli ! Elle já nada ouvia. Escorre- gou nos seus travesseiros, iincou o olhar na cúpula do cortinado, e, nem mais palavra. Fecharam a janella, aconchcjraram-Ihe ao corpo mirrado as dobras da colcha, cerraram o cortinado e — chtit ! — sahiram em bicos de pcs. Xo seu grande leito, o Dr. Paula Guedes, muito branquinho e engelhado, de mãos prist^is, tal e qual como na véspera, quando a Visita de Deus entrara no seu quarto, via desfilar o cortejo ex- traordinário dos grandes vultos da historia. Galeras a todo o panno singravam as ondas ani- ladas com rumo ás terras formosas em que soa- vam a lingua dos Tupys e a lingua dos Guaranys. O espirito do velho Dr. Guedes lá se remontou a 1533, sorrindo ao vulto ]x\llido e seveix) do moço Anchieta, acompanhando-o pelas selvas negras e as montanhas pedregosas, vendo-o escre- ver os seus versiculos sacros e arrebanhar ci-ean* ças para as procissões. Começou então a pensar na construcção do seu discurso. Dividil-o-ia em grandes períodos, com o ULTIMO DISCURSO 243 toda a sua minúcia e caturrice académica ; deve- ria ser uma peça substanciosa, por vezes anecdo- tica, mas sempre elevada. O seu maior empenho era o de fazer este discurso mais brilhante que todos os outros que tinha deixado atraz de si, es- palhados pelas salas, pelas revistas o pelos archi- vos. A palavra entontecia-o, arrastava-lhe o pen- samento na sua torrente macia, onde as idéas lampejavam como faúlhas immorredoiras. O orador começava a achar intolerável a de- mora no leito. Veio-lhe a saudade das suas estan- tes, do conforto da sua bibliotheca, da commodi- dade da larga secretaria, tão affeita ao peso do seu l)raço amigo. Já não sentia frio, já não lhe doiam os mem- bros lassos, quasi inertes ; aquelle convite do Instituto fora a providencia ; trouxera-lhe um pouco de mocidade ; era uma resurreição ! Oh ! o Instituto não se esquecera... estava tran- quillo : deixava um nome, faria falta ! Trouxeram-lhe leite ; bebeu-o de um trago e reclamou papel e lápis. Houve rumor em casa. Consultaram-se uns aos outros. Dariam o lápis ? Dariam o papel ? Uns diziam que sim, outros que não; e entretanto elle, murcho e débil no meio dos seus almofa- dões, coordenava as suas memorias históricas, organisando uma obra digna do assumpto, com um pouco de phantazia que lhe adoçasse a sobrie- dade dos dizeres clássicos, em portuguez bem lit- 2i4 ANCIÃ RTRRNA terario e castiço, como se presava de escrever. Trolixeram-lhc afinal o |iapel e o lápis, e a pouco e pouco foi-se o leito juncando de livros, archivos, glossários, volumes de historia. O Dr. Paula (lucdes já nâo carocia da botija de agua a ferver para os pés ; i>m calor confortativo, de vida, alastrava-se por todo elle, em uma febre doce, que punha cada vez mais acceso o enxame de mosquinhas de oiro dos seus olhos encova- dos. — Cada louco tem a sua mania ; resmungava a familia descontente, com medo d^aquelle traba- lho penoso para um corpo sem sangue, prestes a cahir. Entretanto o discurso ia indo, caudaloso, nos moldes velhos a que o orador se acostumara e que considerava, como bom rhetorico, os únicos ca- pazes de bem levantar as almas. O milagre fez-se. O velhinho parecia ter adiado a morte, e levantou-se oito dias antes da grande solemnidade, com o seu discurso architectado e as mãos cheias de notas que elle coordenou na grande secretaria da sua bibliotheca. Tudo concluido, recommendou ás filhas que lhe preparassem o terno da casaca, as luvas e a gra- vata branca, mais as suas commendas que elle, grande respeitador das velhas instituições, usava sempre nas funcções solemnes. Naquella febre, todo voltado para o ideal e para a historia, o velho Dr. Guedes rejuvenescia, como o ULTIMO DISCURSO 245 se mão mysteriosa o ajudasse, invisivelmente, a caminhar na vida. Dias antes da cerimonia quiz ensaiar-se e expe- rimentar o seu fato, lia tanto tempo guardado no fundo escuro do armário. Preparou-sc ; o corpo nadava-lhe dentro do p:^nno preto ; e dentro do collarinho engommado o seu pescocinho fino mal parecia dever susten- tar-lhe a cabeça branca, recheada de idcas e de imagens gordas. Para que o ensaio fosse completo abriu-se o sa- lão da frente, accendcram todas as arandelas, e os filhos e netos sentaram-se disseminados, como se com a dispersão parecesse augmentado o audi- tório. Dr. Guedes entrou com passo firme, á força de energia, sorriu, fez a mesura do estylo : — « Mi- nhas senhoras ! Meus senhores \ » — e, folheando os seus manuscriptos, começou a fallar cm voz íraca, espalmando no ar a mão direita, emquanto a esquerda carregava as vinte c seis tiras do papel almaço. O seu primeiro discurso não o commovera tanto. É que clle agora julgava-se esquecido, per- dido da memoria dos seus contemix)raneos e d*a- quellas gerações que tinham succedido á sua, com menos brio e peiores armas. Agora estava consolado: o Instituto lembrava-se, e o Instituto valia tudo ! Com as condecorações reluzindo-lhe no peiío 14. 246 ANCIÃ ETERNA magro e fundo, o Dr. Guedes procurava dar gra- vidade ao gesto e sonoridade á voz; mas os óculos descahiam-Ihe, a vista faltava-Ihe e a palavra per- dia-se em um som rouco e débil. EUe mal perce- bia tudo isso, approximava-se da luz, sustinha com os dedos trémulos o aro de oiro dos óculos... E as fillias choravam, constrangidas, muito cala- das, cngulindo as lagrimas. Quasi no fím, em um dos seus melhores perío- dos, em que idéas e i>alavras desabavam com fragor de catadupa, ao esboçar um gesto, o doutor Paula Guedes estacou, abriu os dedos e deixou voar para o chão as tii*as do seu discurso. Acudi- ram todos; recebera m-no nos braços, deitaram- no no seu grande leito de peroba, e, quando olha- ram de perto para o seu rostinho livido, viram que das suas pupilas fundas a ultima mesquinha de oiro tinha partido, como a ultima abelha do cálix de uma flor murcha. Então, a mais calma das filhas reuniu as tiras esparsas do ultimo discurso do pae, dobrou-as c metteu-as carinhosamente no bolso da casaca, tal e qual como se elle, em vez de ter de ir para o cemitério, tivesse de ir para o Instituto ! NO MURO A JULlAO MACHADO Ao fundo do quintalzinho, o alto muro branco estava na sombra. De um único canteiro, á esquerda, evolava-se o aroma de manacás em flor. Do outro lado, a haste débil de uma arvore nova, uma aralia talvez, balançava, em meneios vagarosissimos, a sua folhagem mimosa e leve. Tudo em silencio na casa. As creanças dormiam já, abatidas pelo calor ; a criada mal dera as boas- noites, e lá sahira pela porta fora; só Maria The- reza, respousada da confusão do seu dia trabalhoso, cerrava os olhos preguiçosos, para cá e para lá, na cadeira de balanço, perto da janella da sua sala de jantar. Nem o gaz quebrava o silencio que a envolvia. A claridade é uma voz; só a treva é muda. Aprazia- lhe aquelle socego a que entregava descuidada o corpo e o espirito. E assim esteve muito, muito tempo, com o seu rosto de histérica, longo e pai- lido, volvido para o escuro do quintalzinho estreito. 2Í8 ANCIÃ ETrnXA Mas a lua, que ha pouco lhe clare^iva a frente (la casa, as cortinas rendadas e os tapetes do escrip- torio e da sala, lembrou-se de lhe galgar o telhado e de ir insinuando pouco a pouco a sua luz meii- flua pelo alto muro branco do quintal. Maria Thereza, descerrando os grandes olhos pardos, viu a claridade vir lambendo a parede, numa caricia moUe e frouxa. Ella bem sabia que aquelle grande laivo escuro, desenhando no alto uma ligeira curva e descendo depois em uma linha recta perpendicular, era um pouco de limo e mais nada. O muro, velho, requeria concerto ; tinha, entretanto, íntervallos de uma alvura virginal, que brilhavam á claridade, como linho extendido. Maria Thereza sorriu ; que visão aquella ! dir- se-ia que a longa fita escura se movia agora em uma oscillação lenta, arrastando o seu longo corpo de reptil. Na verdade, uma cobra andaria assim?... E mais adcante, falhas de caliça, umas esguias, outras redondas, quadradas ou elipticas, entravam a mover-se, a adquirir formas extranhas, mal dis- tinctas, incertas, que no tremor da luz mal firme se dissolviam para tomar novamente corpo e forma. .. Ao principio aquillo tudo era mal esboçado, confuso e inculto; mas, de repente, como a luz cahisse melhor, Maria Thereza viu, como se olhasse para um espelho singular, reflectida no muro a sua villazinha mineira, de onde o marido a trouxera para a vida turbulenta da cidade. NO MURO -Õl as suas phrases de oiro bruto. Seria mesmo a alma esquecida da mulata quem vinha num raio da lua desenhar taes coisas em um muro branco? A Maria Thereza parecia então ouvir, em um sussurro delicado e longínquo, a voz da escrava, dizendo : — Lembra-se, Yayá?! Pobre Theodora ! de nada se esquecera Maria Thereza, a não ser d'ella, a sua escrava velha e imaginosa, que lhe florira a infância com os seus contos sem par, historias em que os heróes eram deuses de grandiosos feitos... Lembrava-se da sua villa, das casas dos amigos, mesmo dos mais indifferentes, das. arvores, taes como a nogueira do padre, e do rio, das noites de dansa, das festas da egreja, dos pães, das irmãs, das suas rixas, dos seus abra(;os, das fazendas dos arredores, de tudo... menos d'ella, da mulata Theo- dora, que, já velha, passava noites em claro a embalar-lhe a rede, que lhe refrescava o corpo com o banho, que lhe penteava os cabellos, que lhe engommava os vestidos, que a perfumava, que lhe dava os primeiros doces de qualquer tachada, que lhe contava as mais compridas historias de fadas que nunca lingua humana soube dizer! O Natal... o Anno Bom... os Reis... tudo isso despertava saudades no espirito de Maria Thereza ; — de todos e de tudo se lembrava com lagrimas, e cm nenhuma vira nunca reflectida a figura sim- ples da velha Theodora, risonha, doce e plácida... 2õ2 ANCiA ETERNA A alma da escrava vinha pela primeira vez fazer-se lembrada á sua Yayá, sem um queixume. Ella, que morrera no exilio, longe da sua terra quente de palmeiras e de sol ; ella, que por lá deixara os filhos, não tivera assomos nem impa- ciências para a creança alheia que lhe puzeram nos braços ainda tristes e saudosos do seu fardo amado... e era aquella dedicação pura e heróica, que só agora ella comprehendia, de relance, como se lhe fosse lembrada pela mão invisível de Deus. E no muro branco, nos laivos do limo, nas manchas da humidade, nos esboroamentos da ca- liça, a lua pallida, sem nuvens, esfumava os qua- dros fugitivos da sua vida passada. As scenas régias das historias da mulata eram substituídas por outras : as romarias, os pomares, a estrada e o cemitério... Lá estava o tumulo da mãe de Maria Thereza, de altos mármores e coroas de flores... lá estava o da irmã... os dos avós... os de outros parentes mais afastados... E o da velha Theodora ? Esse, a imaginação de Maria Thereza não pôde descobril-o... Estaria além entre as covas rasas, sem uma cruz... sem um numero? Estivesse ou não^ a alma da escrava não lhe ensinou o caminho e depressa mudou para um scenario risonho o triste scenario da morte. Maria Thereza ia dcsfalleccr, quando se levantou de súbito e fechou a janella com brusquidão. Para que lembrar? A própria lagrima amarga, é doce NO MURO 253 vista atravéz da saudade. Que no velho muro branco a lua extendesse e recolhesse as sombras ; ella fugia, salvando a sua alma abatida, á voz do marido que a chamava da porta. Bem dizia a Theodora, no Cavalleiro da Pluma : ha uma única força capaz de resuscitar os mortos 6 de alegrar os vivos : — o Amor. 15 \ AS ROSAS O meu jardineiro era um homem de feio aspecto, lodo coberto de pellos eriçados, vermelhaço de pelle e de olhar desconfiado e sombrio. Toda a gente me dizia : — Olha que aquelle sujeito compromette a tua casa! põe-n'o fora!... Mas, como elle era calado, mettido comsigo, e porque, principalmente, tractava muito bem das minhas flores, eu levantava os hombros : — Não era tanto assim ! O pobre homem ! Aquelles modos de animal bravio, não os tinha de certo por culpa sua ! E assim iamos vivendo. Uma tarde, em Setembro, desci ao jardim. Que crepúsculo aquelle! No céo, esgarçado de nuvens, a lua, em foice, brilhava já, e com tamanha do- çura, que dava vontade á gente de não fazer outra coisa senão olhar para ella! Havia também no ar, transparente e calmo, tal delicadeza de colorido, que a minha alma fícaria nella extática, se os olhos, percorrendo tudo, não vissem logo u infí- 256 ANCIÃ ETERNA nidade de rosas, que as minhas roseiras promet- tiam. — Quantos botões, Mãe do Céo ! — Tudo isto abre esta noite — resmungou com voz soturna o jardineiro... — Amanhã haverá cen- tenas de rosas no jardim ! A minha phantasia desencadeou-se. Centenas de rosas frescas, todas abertas, deveriam dar uma graça nova áquelle recanto, pouco acostumado a semelhante fartura de flores. Eu mesma quereria colhel-as ainda frescas de orvalho : mandaria um ramalhete a minha mãe, cobriria de rosas a sepultura de minha Slha, en- cheria de rosas a minha casa... E, usando de uma forma impei-ativa e severa, pouco commum em mim, disse ao medonho e hir- suto jardineiro que não tocasse nenhuma flor ! Seria eu quem as colhesse todas ! Elle curvou-se, em obediência. Nessa noite, fui cedo para a cama, preparando- me para madrugar no dia seguinte. E tal era o meu propósito, que peguei logo num somno doce 6 tranquillo. Eram seis horas e já cu estava no jardim. Gomo quem desperta de um sonho, apatetada, olhei á roda e só vi folhas... folhas e mais folhas verdes! nem uma flor! Gritei pelo jardineiro, e elle veio, como por AS ROSAS 257 encanto, num momento, mas com tal geíto e tão demudadas feições, que tive medo. Os olhos, de vermelhos, eram só sangue; a barba áspera, longa e ruiva, estava revolvida como por um vento de loucura, e nos grossos bra- ços tisnados tinha signaes fundos de unhadas... — As minhas rosas?! — perguntei-lhe, disfar- çando o pavor que a sua figura extranha me in- fundia. — Estão aqui ! — disse elle, com voz grossa, como um baixo de orgam de cathedral ; e cami- nhou para o quarto. Fui atraz d'elle, espantadíssima, mal segurando a saia do vestido, que se não molhasse na relva, — cheia de raiva e curiosa ao mesmo tempo. O quarto do jardineiro era ao fundo, entre a horta e o jardim, ao pé de dois limoeiros da Pér- sia, de gostoso cheiro. Ensombrando a porta, havia uma latada de maracujás, e, á esquina, encostados á parede, estavam os utensilios de jardinagem. — Que quererá elle? — perguntava a mim mesma. De repente, estaquei : — Não entro — respondi, a um gesto que me fazia. — Então, olhe d'ahi — ! replicou o homem bruscamente, escancarando a porta. Encostei-me ao humbral para não cahir. No meio do quarto, sob uma avalanche de rosas perfuma- díssimas, entrevi o corpo de uma mulher. 258 ANCIÃ ETERNA — Era minha filha, — disse o jardineiro, entre soluços que mais se assemelhavam a uivos que a dôr humana; — um dia abandonou-me, correu por esse mundo... Esta noite, veio baterão portão, muito chorosa... que o amante lhe batera... Ouviu bem, senhora? ! Quiz fazel-a jurar que desprezaria agora esse bandido, para viver só no meu carinho. . . só no meu carinho ! . . . Eu havia de tractal-a com lodo o mimo, como se fora uma creancinha... Fiz- lhe mil promessas, de joelhos, com lagrimas... Sabe o que me respondeu, a tudo?! Que amava ainda o outro ! Cego de raiva, matei-a ; ah ! matei-a e não me arrependo... Antes morta por um pae honrado do que batida por um cão qualquer... Depois de morta... achei-a linda, linda! mas, coitadinha! vinha miserável, quasi mia... tive pena, e para fazel-a apparecer bem a Nossa Senhora, vesti-a de rosas!... índice Anciã Eterna 1 O Caso de Ruth 9 A Rosa Branca 23 Os Porcos 33 O Votoi 43 E os cysnes? 51 Sob as Estrellas 59 A Primeira bebedeira 67 A Casa dos Mortos 75 As Historias do Conselheiro 81 A Caolha 93 In Extremis 103 A Boa lua 111 Esperando 117 Incógnita 125 A Alma das flores 133 Ondas de Ouro 141 O Ultimo raio de luz 151 A Morte da Velha 157 Perfil de preta 107 A Nevrose da Côr 179 As Três Irmãs 189 ,1 260 índice O Vóo 199 Pela Pátria 207 O Dr. Bermudes 217 A Valsa da Fome 223 O Futuro Presidente 231 O Ultimo discurso 239 No muro 247 As Rosas 255 Paris.— Typ. Q. Garxier, rae dcs Saints-Pèrcs. 301.9.1903. Cl. 3675^ 077